terça-feira, 27 de junho de 2023

Soneto do homem só II

 


Chegou teu companheiro de viagem
Que sai da casa ainda adormecida
Sem nada de importante na bagagem
E volta cochilando p'la avenida.

Chegou teu companheiro de pilhagem
Que sai de casa feito uma criança
E volta carregando na roupagem
Destroços luminosos da esperança.

Um pouco de teu fôlego e lugar,
Do que sequer consigo imaginar,
Resquícios que me sobram de nós dois:

Calçadas, alamedas e desvios
Que em vão nós percorremos erradios
Sem nada o que deixarmos pra depois.

domingo, 11 de junho de 2023

Lunático

Ó louca lua

Desnuda e gélida,

O que me contas

Nesta noite tétrica?


Que um dia

Estes corpos

Mortos e frios

Foram vidas elétricas?


Que estas bocas

Silentes da afasia

Um dia foram

Coro e algaravia?


Ó louca lua

Desnuda e pétrea,

Um dia foste

Lauta e profética!


Inspiraste,

Insana e frenética,

O coração dos ascetas,

Dos abades e dos poetas


E foste o álibi

De todos os criminosos,

Daqueles que buscavam

Em cismas e milagres

O perdão e a eternidade.


Tu me aparecias

Em forma de mulher

Com as vestes rasgadas,

Um seio e o púbis à mostra

Numa solitária estrada

Em que, iníqua, tu brilhavas.


E por mim acompanhada

Nada me dizias

Ou me indagavas,

Apenas o meu leito

Tu corrompias

Na madrugada.


Eu vinha do mar.

Era onde eu te via,

Mas não onde te tinha,

Pois era num lupanar

Em noites frias

Que te possuía

Dos céus despregada.


Ó santa pura e profana,

É por ti que o herege

Peca e exclama!


Tu que dos céus

Preparaste as insídias,

Rasgaste as insígnias

E todos os véus!


E nua, sempre nua

Como uma hetaíra

No firmamento

Da Grécia antiga


Ou noctívaga

E sonâmbula

Nos sofrimento

Dos que amam

Na mais escura treva

Habitada por corvos,

Templos e altares

Em ruínas,


Vagas, deambulas

Por todos os corações

Em festa ou em luto

De quem caminha

Por átrios, câmaras e colunas

Ou dorme debaixo dos viadutos.


Oh, tu que foste

A perversão e o vício

Dos corações apaixonados,

Errantes e perdidos


E te derramaste

Nas noites e vales

De brilhantes catadupas

E telúricos tropismos.


Oh, tu que foste

A breve loucura

No torturado espírito

De todos os arrependidos,


Ó louca, nua,

Impassível e gélida,

Tu me torturas,

Tu me torturas

Há incontáveis eras!

domingo, 4 de junho de 2023

Corvo

 Escrever às vezes

É um estorvo.


O quanto penou Poe

Até chegar ao O Corvo?


É vasto o céu

Assim posto,


É vasto o céu

Assim póstumo!


O quanto penou Poe?

E ele está morto!


Mas o corvo,

Com suas asas


Sobre a estátua

De Palas,


Mas o corvo

Sempre à nossa espreita,


Atrás, na frente,

À esquerda ou à direita;


Mas o corvo,

Sempre à nossa porta,


É um estorvo,

Velho, sempre novo,


Ave, Demônio

A estraçalhar-nos os sonhos,


A pousar no busto de Palas

E no meu ombro,


Negro, negro, negro

A curvar-se no meu leito.


Grasna que a morte

É para todos


E que a vida e a sorte

São nosso maior engodo,


Grasna aos quatro cantos

Como um louco.


Oh, o quanto penamos

Lendo O Corvo?


Irmão, Poe,

Ele também se foi,


Irmão, Lee,

Nunca mais o vi -


Mortos, mortos, mortos

Aos pés dos corvos!


Hoje é uma asa negra,

Deus sem trono,


A velar-me o sono,

Meu corpo que só deseja.


Nunca mais! Nunca mais!

É o agouro que nos putrefaz.


Matou-me o verso,

Negreja-o agora


O último fóton

Do universo.


Sinto-me fraco,

Amargo, travo,


Sinto-me sem espaço,

Um velho calhamaço,


Sinto uma vontade

De me matar,


De nunca mais amar,

De reescrever-me almaço,


De despojar-me

Do corpo, da carne,


De cortar-me o braço

E dormir, velando-me,


Para curar-me de tanto

Medo e cansaço.


Oh, o quanto nos alertou

O grito do Grou


Antes que nos viesse o Corvo

Aos umbrais após o voo?!