sábado, 29 de maio de 2010

Desespero romântico




















Só, na penumbra,
Depondo um caule seco
Na tigela,
Uma questão me ressumbra
Sob a luz da vela:
Que nos resta
Senão o espinho
E esta vazia cela?

Haverá fortaleza,
Haverá natureza
Que suporte isso
Neste terreno cediço?
Franca beleza
Que não perca o viço?

Ó louca lua,
Vermelha e nua,
Dize-me ao menos
O que é o ser
Nesta vida de somenos?
Dize-me que são
Estas falanges
De gente morta e exangue?

Dize-me quem são,
Tu que, súbito,
Demudada e lenta
Surges rubra,
Sanguinolenta,
Carnívora
Nesta atmosfera
De corpo e sangue.

Dize-me o que é
Esta gente langue
Que volta pra casa
Silente e estanque
Seguindo num bonde
Que chega aonde
De paludes sombrios?

Dize-me o que é,
Sob esta atmosfera
De pântano e fera,
Tanta gente que espera
Ouvindo o carrilhão
Vibrando da catedral
E de abissal região!

Dize-me que são
Os mares e marés,
O sol e as estrelas.
Sobretudo as estrelas!
Essa louca vontade
Que tenho de vê-las,
De tê-las
E compreendê-las.

Fala-me do quark
E do quartzo,
Tu que surges
Na janela do meu quarto,
Tu que a tanto nos observas
Como a um filho
Após o parto.

Dize-me quem és,
Filha de Théia,
Irmã gêmea da Terra,
Que pelo céu erra
Desnuda e atéia!

Dize-me o que são
Tanta forma e estrutura,
Tanto véu de loucura
Que em si tudo enclausura.

Dize-me o que são
Tanta vida
Ao rés desse chão
E esses corpos no escuro
Que alheios caminham
À própria matéria
Contra toda a sorte,
À espera da morte
Em solitária clausura.

Dize-me o que são
Tanta nau naufragada,
Tanta onda cansada,
Tanta vida afogada,
Tanta gente sem glória,
O Ser, o Tempo e a História!

O que dizes?
Nada dizes!
Apenas sussurras
Por sobre as marquises:

- Intrusa, irrompida vida,
Ainda recente ou finda,
Inunda logo a avenida
E tua cela vazia...

domingo, 16 de maio de 2010

Sumário dos dias















Por onde passaste e te perdeste
Num mar de procelas borrascosas?
Nem mesmo tu sabes protegido
Por quatro paredes que te encerram.
Lá fora o dia é sem precedentes.
Não há nada igual e os homens catam
E contam calados as ruínas
Dos corpos imotos, sem desígnios,
Co’a comprida vela esfarrapada
De um lenho repleto de naufrágios.
Quiseste transpor o bojador
E êxito lograste em tão extensa
E arriscada empresa, porém não
Transpuseste a dor da solidão,
De quem pelo mar, expatriado,
Regressou sem fé, feito em pedaços.
Calecut alguma divisaste
Ao fim da jornada para a glória;
Viste tão somente um breu profundo
De abismos e pântanos sombrios,
Que é a própria máquina do mundo;
Mares em que não discernes céus
De amorosa estrela cintilante
Que a Deusa averruma no horizonte,
Pois toda a alma nasce sempre imensa
Até se encontrar co’o mar e ver
O quanto é miúda e sem destino,
Até defrontar-se co’as metrópoles
E ver-se sem alma na rotina.
E agora de volta para casa,
Anonimamente conduzido,
Melhor compreendes o que foste,
O que és e serás na tempestade
Íntima de ser que se procura
Sempre no maralto da cidade.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Canção suicida





















Antes era livre;
Dispunha de amplo
Firmamento teórico para aventuras
Amorosas e ontológicas,
Mas nunca conjecturei-me feliz,
Sabendo até que muito desejava tal emoção.
Certas associações tão óbvias
Não se conjugam neste mundo incongruente,
Enquanto algumas contradições surpreendentes
Enredam-nos facilmente nos viéses da vida,
Pois sendo amante devasso
De todas as fórmulas de lupanar
E de fêmeas filosofias ocidentais,
Não era feliz,
Não, ao menos, como um dia foram
Gregos ou romanos transfigurados
Pela apolínea beleza do Olimpo...
Contudo, hoje, quando circulo,
Sempre me deparo com paredes
Sem contradições, de crueldade,
Liturgia escolhida
De uma única profissão de fé.
Porém, nem tudo parece perdido...
Nelas, percebo sempre uma janela
Para, de monturos de arame e aflição,
Defenestrar-me, alcançando,
(Quem sabe?) após prisão e flagelo,
A medida vaga da aceitação,
Que vem de saber que o saber
Faz sofrer eternamente...