quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Soneto da lamentação


Pena durarem pouco as amizades
E de igual modo as paixões e os amores;
Que desbotem como murchadas flores,
Pois tudo é breve e frágil nas cidades.
Pena ganharmos logo tanta idade,
Perder meu dia tão rápido as cores
Em meio a cãs, rugas e muitas dores,
Pois tudo é choro, tristeza e saudade.
Se um dia fui feliz, já não me lembro.
Encerro mais um lúgubre dezembro
Sozinho sem amada e sem amigo.
Se um dia fui alegre e desejado,
Agora vivo triste e desprezado
Como Ulisses vestido de mendigo.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Esta cidade


Esta cidade
Atravessou-me o lado
E dele saíram
Portos e esquinas,
Punhos cerrados
E quarenta dias
De sede, fome e delírios.
Dele saíram
Homílias e evangelhos,
Imensos megatérios,
Soluços e violoncelos.
Dele saíram
Raios e insetos,
Alucinações
E cogumelos.
Esta cidade
Atravessou-me o lado
E dele saíram
Elevados cumes
E anjos
Que me precipitaram
Ao chão de asfalto,
Betume e concreto.
Dele saiu-me
O que sou:
A lança e o deserto.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Boca

 

Boca primitiva
Onde, nu, escopofílico,
Venho sempre me sujar,
Onde de nada me privo
E me torno filho,
Rebento nascido
Em meio a sêmen e saliva.
És-me embrião e intestino
Para meus desejos escondidos,
Sádico amor, anterior
Ao masculino e ao feminino,
Alvo, presa de músculos e caninos.
Alimento
A esfaimado canibal,
Boca contra a qual
Os homens lançam
Recalques e desdém,
Mas onde não preciso
Ser nada, ninguém,
Só o cio do animal.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Andar por aí


Andar por aí
É ser de novo
Jogado para o alto,
É ir trepado
Nos teus ombros
Sentindo o olor dos teus cabelos
E o frêmito ao ver
O contorno de teus seios.
Andar por aí
É brincar de novo
Na gangorra e no balanço,
Sob um olhar de candura,
Sentir o vento,
As lufadas de ar
No meu rosto e cintura.
Andar por aí
É ver de novo
O meu ferrorama
Dando voltas e mais voltas
Ao lado da minha cama.
Andar por aí
É voltar a brincar e correr
Pela praça,
É viver num mundo
Sem nenhuma ameaça.
Andar por aí
É esquecer os sacolejos
De mais uma viagem
Repleta de agonia,
A náusea e o desprezo
Que me acompanham
Até o fim do dia.
Andar por aí
É imaginar-me de novo
À barra de tua saia
Quando preparavas o almoço
E me falavas do perigo
Das facas e do fogo
Para que, quando
Eu fosse moço,
Tomasse cuidado
Com a cidade,
Com tanto rebuliço
E alvoroço.
Andar por aí
É estar de novo
No teu colo de acalanto,
É dormir no embalo
Dos teus braços
E canto.
Andar por aí
É voltar a ter esperança,
É rever-me,
Em cada rua,
Em cada esquina
E bairro,
Os tempos idos de criança.
Andar por aí
É repisar, repisar,
Passo após passo,
O entrelaço
Da minha vida
Com tanto aço,
Vias, vigas e vidas.
É ver o transfigurar
Da antiga vizinhança,
De velhas ermidas e endereços
Em tanta rua por que passo,
Em multidão que não conheço,
Mas na qual me vejo,
Rosto antigo de menino
Que nunca deixou
De ser teu filho,
Ó mãe, cidade,
Deste andarilho.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

No fim

 


No fim, o que nos resta?
A fidelidade do cão
A abanar o rabo
Entre bancos e cadeiras
Mudos após a festa?
Amplo espaço vazio
Sem bancos ou cadeiras,
Só com o cão,
Gárgula a contemplar
A última laje do poeta?
No fim, o que nos resta
Senão as frestas
Por onde víamos
O incomensurável desfile
De nossos ardores e metas,
De nossos beijos e desejos
Porque hoje
Os já não vemos mais,
Os já não temos mais?
Cobriu-as por completo a hera,
Devorou-os o colmilho do tempo,
Essa fera!
Agora, tudo calado,
Sem riso, sem pranto,
Jardim morto sem giestas,
Fruto maduro no chão
Sem ninguém para comê-lo,
Folhas mortas, dispersas,
Manto enlutado da terra.
No fim, o que nos resta?
Pouca coisa, alguém
Que, às pressas,
Nos faz uma prece!
No fim, o que nos resta?
Pouca coisa
Sem qualquer senso,
Silêncio - canto sem gesta!
O fruto, as folhas,
O cão, o chão -
Suma, súmula
De tudo:
Urna de treva.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Sonho


Sonho
Que fujo

De monstros
Medonhos,
De tigres que me devoram
O próprio sonho.

Sonho
Que me cortam
O que tenho
De mais doce,
O fruto,
O sonho,
O pomo,
O que me faz sentir
Ereto, eterno
E todo.

Sonho
Que já não há
Mais festas e momos
E que em nossos
Lábios sôfregos
Resta só o choro,

Uma lápide
Sobre os beijos
Que damos
Sem nenhum recato
No meio da rua
Do nosso anonimato.

Sonho
Que meu sonho
Seca nas rugas
De um velho tardonho,
Enregela-se nas verrugas
De um casal tristonho.

Sonho
E não há sonho pior
Do que sonhar
Que o próprio sonho
Naufraga em alto-mar,

E acordar sem saber
Se estive a sonhar
Ou se meu sonho
Foi só um sonho
A cismar ao luar.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Para amar

 

Para amar, uma mulher

Não deve ser moralista.

Não é sabido

De ninguém que,

Sendo severo juiz

De si e do mundo,

Tenha amado

E sido feliz.


Para amar, uma mulher

Não precisa do pundonor,

Pois nunca o orgulho,

A honra e o valor

Evitaram que alguém

Se entregasse ao amor.


Para amar, uma mulher

Não precisa ser justa,

Pois o amor não diz respeito

À razão, ao direito e à justiça,

Pois sabe o quanto é vão

Ser justo nas sendas da paixão.


Para amar, uma mulher

Não precisa estar certa,

Não precisa agradar, ser reta,

Pois o amor não quer qualidades,

Não se preocupa com a verdade,

Só com o querer, o corpo e o cheiro

Que lhe excitam as vontades.


Para amar, ah, mulher,

Não é necessário virtudes,

Caráter, qualidades morais,

Predicados intelectuais

Que ajudam a amar,

Mas não nos roubam o ar

Como só conseguem os sensuais

E ninguém mais.


Para amar, mulher,

É preciso apenas um rosto,

Um sorriso, um olhar,

Um jeito de ser

E de se expressar

Que só consegue ver

Quem está apaixonado.


Pois só a fantasia e a ilusão

Podem fazer, mulher,

Amar um coração.


Pois o amor é um raio

Que ilumina

O espelho d’água

De dois olhos

Onde vemos refletida

Do coração apaixonado

A própria alma.