quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Quando eu morrer

Quando eu morrer
Me pesará a terra
E não serei
Qualquer coisa
Diferente
De seixos e pedras.

Quando eu morrer
Não sentirei mais
Qualquer carência
E ainda serei matéria,
Vida
A segregar
Purulenta.

Quando eu morrer
Não sentirei
Qualquer necessidade,
Serei apenas
A verdade plena
Da caveira.

Quando eu morrer
Deixarei de ser
O que sou:
Eu, indivíduo,
Ser fechado
E descontínuo
Para me tornar
Inorgânico
Ao todo reunido.

Quando eu morrer
Nada importará,
Quem sou,
Quem fui,
Se vivi entre amigos
Ou feras,
Se fui luz
Ou se fui treva.

Quando eu morrer
Ninguém me pesará
Para saber
Se pesei
Ou se fui leve,

Se cri
Ou se sofri,
Se neguei
E fui feliz,

Se fui algo
Além
Desse ser
Que vela,
Espera
E diz amém.

Quando eu morrer,
Certo torpor
Sentirei,
Nuvens minha vista
Nublarão
E, enfim,
Irromperei
Na escuridão.

Quando eu morrer
Nada verei,
E de tanta vida e beleza.
Não conservarei
Qualquer promessa,

O rosto vão das certezas,
O fogo da juventude
Que nos inflama
E ilude,
O gozo e a chama
Desse corpo
De vicissitudes
Que chora e ama.

Quando eu morrer,
Nada verei,
Nenhum senhor ou rei,
Prato, juiz
Que pesa e condena,

Serei defunto, matéria
Que não revela
Se vivi parco
Ou deveras,

Se fui fraco
Ou se fui forte,
Mas apenas
Que, efeméride,
Ensaiei breve ato
Para a morte.

Quando eu morrer
Qualquer coisa serei
Que não se pesa,
Algo mudo, inerte
Para alguém que reza
E acende uma vela.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Deusa

Mãe de todos os deuses,
Mulher de Zeus e Jeová
Eu sou Ester,
Vésper, grande mar.

O homem, o profeta
Não sabem quem sou,
Meu amor não é
Por escribas e exegetas.

É o que nutre
A mãe por um filho
E que o protege
De feras e abutres.
 
É o início,
Todos os começos,
As lágrimas do Nilo
De Biblos ao Mar negro,
 
A rede do pescador,
A sede dos escravos,
A labuta e o arado
Do lavrador.
 
Não quero o assassínio,
Nem morte e escravidão
Quero estar no templo
Do rei Salomão.
 
Não quero sacrifício,
Quero apenas hinos
Pães, bolos e alimento,
O perfume de um incenso,
 
Que derramem
Na boca dos vivos
Vinho e leite,
Mel e azeite
 
Que, em favos, oferto
Dos meus seios,
Cachos e cabelos –
Fontes no deserto,
 
Pois abomino
O sangue dos castigos,
As terríveis profecias
Do cego Jeremias,
 
A loucura de reis
Que pilham, destroem
Templos, altares
Em nome da lei.
 
Sou mãe, tenho filhos
Entre hititas e cananeus,
Entre gregos e assírios,
E egípcios e judeus.
 
Sou próspero caminho
Terra fértil onde
Não há a espada
Ou a fome,
 
Onde, nas moradas
De Judá a Ishtar,
Nada falta,
Pois sou lauta,
 
Irmã, mulher,
O seio nutriz
De Inanna, de Ísis
E da muçulmana,
 
A fé de Magdala
Contra pedros pétreos,
Prontos a bani-la
E rejeitá-la.
 
Nunca o menos,
Mas céu, Vênus,
Grande mar,
Asherah.

domingo, 3 de novembro de 2013

Canto novo


Muares mugem pelas ruas,
Mas já não são mais
Apenas bois e alimárias,
São leões e tigres
Que juntos rugem
Gritos de ordem,
Bravas árias.
E até o poeta
Que só ladrava para a lua
Soma agora seu canto
Ao coro livre das ruas.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Meu país

Meu país são jovens
De Belém a Juiz de Fora,
De Porto Alegre
À Praça Sete
A gritarem:
Fora!
Queremos um país,
Outro, novo
Agora!

Meu país é aquele
A erguer um cartaz,
Em meio a tiros,
Cavalos e canhões,
Que pede paz.

Meu país
É uma praça em chamas
Enquanto nos átrios
Mais alvos e brancos
Só há roubalheira
E infâmia –
Homens imundos
Vestidos de santo.

Meu país
São gritos, brados,
Novo canto,
Coro e esperança
De que enfim romperemos
Os grilhões do passado
E jamais voltaremos
A viver como gado.

Meu país é um sonho
Com o qual cubro-me os ombros,
Verde-louro manto
A resistir, nas barricadas,
Às bombas que explodem
Em terrível estrondo.

Meu país é a moça
A oferecer uma flor
A fardas cinzas, escuras
Repletas de silêncio e dor.

Meu país é esta flor,
Rubra de sangue e ardor,
A provar que a luta não é vã
E a irromper do alvor
De uma nova manhã.

sábado, 7 de setembro de 2013

Na rua

Oferto ao meu povo
A gota de sangue, de bile,
Qual um novo Aquiles,
O peito aberto, desnudo
A encarar, no tumulto,
A ira dos escudos.

Empunho cartazes,
Flores e bandeiras
Em meio a gases sufocantes,
Mas não recuo,
Sigo adiante
Por avenidas e ruas.

MPL e CMP,
FNDC e CTB,
Sem teto e sem terra,
Juventude socialista
E via campesina,
Marcha das mulheres
Brancas ou camponesas
Santas ou negras,
Esperança e baluarte
Para quem antes
Não tinha norte ou estandarte.

Corro de tiros e bombas,
Picho prédios e muros
E invisto com paus e pedras
Contra as novas bastilhas
A oprimir com a polícia
O coração que sonha
Sitiado por feras.

Alimento as chamas
E convoco para a briga
Pois o que me inflama
É a sede por justiça.

Sejam padres, putas ou bichas,
Nazis ou anarquistas,
Crentes ou comunistas
Seguem todos,
Juntos pela pista
Até que retrocedam
Os homens de capacete
Com armas e porretes,

 Até que morram todos
Os opressores do povo,
Deputados e senadores,
Malditos saqueadores!

Tomo todas as vias
Com multidões em passeatas.
Resisto à cavalaria
Com fogo e barricadas
E à tropa de choque
Com coquetel molotov.

Verás que um filho teu
De nada foge
E que o povo unido,
Black bloc,
Tudo pode,

Porque a nossa luta
Não é por um quinhão,
Por míseros centavos,
Mas para extirpar
Conluios, vis condutas,
Corruptos ignavos
E o espírito escravo
Do seio da nação.

domingo, 11 de agosto de 2013

Pai

Na poltrona da sala,
Tu te sentavas
Como se num trono.
No teu rosto pétreo,
Não havia sonho,
Não havia beijo,
Havia um cetro
Sobre meu ser e desejo,
O medo de encarar-te a face,
A ordem para que eu não me deitasse.

Assistias à TV sério.
Não confabulavas
E o teu silêncio
Preenchia toda a casa
Com um ar severo.

A impassível estante
Repleta de livros
Não deixava entrever,
Na sala, sequer
Um choro furtivo,
Apenas a ameaça
De homens e gigantes.

Sem saber, como tu,
Lutar, calar, reinar,
Largava-me no sofá
Sem ousar desafiar
Teu reino e tabu.

Mas, vieram as Eríneas,
Furiosas, cansadas
De cozinhar e fiar.

Atormentaram-me,
Seduziram-me,
Consangüíneas,
Até me insurgir
E cuspir-te.

Hoje, a estante está nua
E, nos fundos da casa,
Senta-se a privada
Para ver tua terra devastada,
O fim dos livros
E a revolta dos teus filhos.

Hoje, ponho anel,
Ponho relógio,
Cala em mim o teu fel,
Teu necrológio,
Enquanto assisto,
Deitado no sofá,
Ao fim de um apogeu,
Ao crepúsculo de um deus.




quarta-feira, 17 de julho de 2013

Tempestade

Tromba de um deus
Paquidérmico e cinzento
A fustigar-me
Com chuvas e ventos;
                     
Língua plúmbea e marrom
A torcer-se em espiral
De fúria e som;

Precipício gutural
A vomitar-me
Pó, fogo e detritos;

Céu de granizo
Apedrejado –
A primavera
Traz as piores feras
De maio:

Grenha turbulenta
A assolar a terra
Com tormentas
E raios.

Oh, que anjo assoma
No céu de Oklahoma
E sopra deveras
Apocalíptica trombeta
Repleta de ira e bestas?

Nada mais resta
Do gado, do pasto
E da safra de milho.

Nada mais resta
Senão o desespero
Do clamor e do grito
Das mães à procura
De seus filhos,
O choro de medo
Dos órfãos
Sob os escombros
E a chuva.

Nada mais resta
Senão o terror
De mim mesmo,
Paisagem do avesso
Da qual tudo parece fugir...

Minha nudez e desterro
Onde antes só havia
O ouro a fulgir
À luz plena do dia,
A placidez dos alísios
A soprar nos campos de trigo.

sábado, 22 de junho de 2013

Silvano e Taís

Irmã,
Eu beijo a serpente
Eu mordo a maçã.

É quando acordo
Pela manhã
E estás nua
Na minha cama,

É quando acordas
E me falas
Das náiades,
Dos bosques e romãs.

É quando vejo
Que guardas
Entre as pernas
As nossas horas
Mais fraternas,

É quando me ofertas
A flauta de Pã,
A noite
E as cortesãs,

É quando dizes
Que odeias o Tebaida,
E que tua casa
É a opulenta Alexandria,

É quando confidencias
Que enganaste
O monge cenobita
E que jamais deixaste
De ser uma hetaíra.

É quando me despertas
De um quotidiano
De culpa e engano,
Bafejando-me,
Junto a cascatas e fontes,
O alegre nome:
“- Silvano, Silvano, Silvano...”

Oh, irmã,
És Taís
A devolver-me
A meu verdadeiro país!


sábado, 1 de junho de 2013

Silvano

Silvano é alegre!
Sinto amor,
Sinto febre,
E corro nu
Como as gazelas
Atrás de lebres
E donzelas.

Seduzo as mais belas
E nos eflúvios do álcool
E da cocaína
Faço amor com elas
Porque amar
É minha sina,
Viver entre mancebos
E concubinas,

Ao som
De tambores e flautins,
Ébrio de orgias
E festins
Com efebos e meninas.

Ah, viver no enleio
De braços, pernas
E seios,
Devasso
A sempre cair preso
No laço dos desejos.

Pinto o rosto,
Ponho máscaras
E levo ao riso.

Impressiono,
Cabotino,
Mulheres e meninos
Só para ter
De rosetas e falos
Os altos páramos
De um orgasmo.

Beijo, beijo, beijo,
E amo com ardor e pressa
Porque a morte é certa
E a velhice é ruína
Sem qualquer promessa.

Porque só no gozo
Antevê a alma
Aquela profunda calma
De não carecer
De ascese ou cabala,
De sentir-se livre
De todas as jaulas –
Êxtase do nada!

Silvano é alegre!
E não há
Como não sê-lo
Quando o dia é breve,
Mas repleto
De promessas
E enlevos.

domingo, 19 de maio de 2013

Aos homens


Amar uma mulher
É deixar de ser Narciso,
É aprender a amar
Aquilo
Que não se parece comigo.

Amar uma mulher
É negar a própria mãe
E, entre dois seios,
Armar e amar
Um novo ninho.

Amar uma mulher
É querer ser de novo
Menino,
Renovo,

É o mais belo gesto
De altruísmo,
É querer ir além
De todo o egoísmo

E encontrar
O que, em nós,
É feminino,

O múltiplo no uno,
O que outrora
Nos foi dividido.

Amar uma mulher
É sobretudo
Morrer
Nas orlas dum umbigo
E renascer,
Ouvindo-a cantar
Uma canção, um hino.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sonho


Sonho
Que fujo
De monstros
Medonhos,
De tigres que me devoram
O próprio sonho.

Sonho
Que me cortam
O que tenho
De mais doce,
O fruto,
O sonho,
O pomo,
O que me faz sentir
Ereto, eterno
E todo.

Sonho
Que já não há
Mais festas e momos
E que em nossos
Lábios sôfregos
Resta só o choro,

Uma lápide
Sobre os beijos
Que damos
Sem nenhum recato
No meio da rua
Do nosso anonimato.

Sonho
Que meu sonho
Seca nas rugas
De um velho tardonho,
Enregela-se nas verrugas
De um casal tristonho.

Sonho.
E não há sonho pior
Do que sonhar
Que o próprio sonho
Naufraga em alto-mar,

E acordar sem saber
Se estive a sonhar
Ou se meu sonho
Foi só um sonho
A cismar ao luar.

sábado, 13 de abril de 2013

Fragmentos


        I

Não temo a vida,
Meu único versículo,
O fora e o dentro
De todo o círculo.

          II  

Buda, Cristo, Krishna,
Tudo será sempre
Artifício, verbo, fadiga,
Deus ex machina.

           III

Vejo sóis, noites
E alvoradas,
Círculos concêntricos,
Ondas a irradiarem-se
De um único centro:
O nada.

         IV

Sinto em tudo
Um profundo vínculo:
Somos todos surdos
Procurando sentido
Para o absurdo.

          V

A vida – furioso helianto –
Simula-se em canto,
Porque somos todos
Filhos da loucura
E do espanto.

            VI

Salto de todos os círculos,
Rompo circuitos, esferas,
Chego ao finis terra
Para ver o que tanto nos aterra:
O infinito ao finito circunscrito.

sábado, 23 de março de 2013

Poema da vida inteira


Outrora, qual a Aquiles,
Quase me devoraste,
Escamandro furioso,
Procela borrascosa – desmesura.
Espremeste-me contra paredes,
Pegaste-me pelos gorgomilos,
Exigindo-me tudo o que não tinha,
Tudo o que perdi ou vendi,
Tudo o que sempre exigiste de todos:
Venalidade!
Enquanto três bocas
Choravam ruidosamente.
Nestas horas, roubaste-me
Até meu corcel negro,
E quando pedi ajuda, decretaste:
“ – Não sei se é verdade... te vira, rapaz!”
Grande artista da esquiva e da omissão,
Quase me arrancaste todas as lágrimas,
Fazendo-me sinistros convites ao mar.
Terrível alquimista,
Transformaste todo meu mar e sal
Em pedra, todo meu céu e lume em lodo.
Entretanto, estou aqui:
Mil vezes amado, desprezado,
Mil vezes perdido e sem caminho,
Mil vezes sem profecia ou futuro
A te encarar nos olhos... vivo!
Com os ombros curvos
De quem muitas vezes baixou a cabeça,
Em cadeira, de quem quebrou
Orgulhosa cerviz.
Hoje, estou aqui te encarando,
A esboçar um sorriso,
Sem perigo de virar pedra.
Outros choram, lamentam-se,
Preferem puxar o gatilho da melancolia,
Embriagar-se da memória dos que partiram.
Comigo não é assim:
Já não sinto sede ou fome
Na língua seca, no estômago enjoado.
O esquecimento é o bálsamo
Que ofereces a esta esponja ressequida.
Hoje, vozes compungidas
Calaram-se em meu peito,
Aguilhões a me ferirem
Já não fazem mal
À carne afeita à dor.
Agora, admiro tardes iluminadas e frescas
Que tanta luta ensombrou, esfriou,
Que tanto arrependimento transformou
Em noite e tempestade...
Sinto-me faltoso, por isso humano, completo.
O futuro não mais me inquieta: vivido está!
Perdido está!
O passado dia-a-dia julga-me,
Mas vou sempre sorvendo as velhas mentiras
Que imobilizam toda a culpa
E as revoluções deixadas por fazer...
O presente reduziu-se a um zéfiro suave,
À profunda aceitação.
Este momento sem perspectivas, metas,
Ou pegadas encapsula-me.
Sou duro, carne de pescoço.
E agora?
Pergunta que já não cabe mais:
Agora estou completo, perdido,
Perdido...



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Bélico


Flores bélicas
Rebentavam em todos os canteiros.
Bellum rufava seus tambores
Nas hostes do meu quarto,
Entoando um hino
Repleto de seqüestro e assassinato.
Súbito, então, comecei
A oferecer flores e balas
Nas escolas,
Nos cinemas e teatros,
Em todas as ruas
E casas,
Em ônibus e trens.
Eram lírios e tomilhos
Furibundos,
Narcotizados
E guerreiros,
Lançados dos rifles
E bombardeiros.
E tudo parecia-me terrível e Belo
Como a lua a estuprar-lhe os amantes
E a despregar-se, como um alien,
Sangrenta, crescente,
De nossos ventres.
Colhi todas essas flores
Ao som de desesperadas cigarras
E de justiceiras espadas.
Cheguei mesmo a cultivá-las e traficá-las
Por toda África e Palestina,
Flores fétidas e clandestinas,
Como um jardineiro
A passar tudo a facão,
Como um padeiro a envenenar o próprio pão.
Era preciso cumprir minha pena,
Seviciar todos
Que me maltrataram sem pena
E me entregaram aos chacais e hienas.
Hoje não cultivo mais.
Estou em paz.
Bato ponto,
Leio a bíblia
E entrego o protocolo
A mães que carregam no colo
Filhos e pais
De futuras chacinas.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Restos da América


Este poema é baseado no relato de Frei Bartolomé de Las Casas sobre a conquista da América e é a ele dedicado.

A ti, América, restaram somente
As avançadas furiosas,
O preclaro comandante à frente
Das hostes guerreiras
Ávidas de ouro e sangue!
Restaram-te somente
A pele trigueira ensangüentada,
Os crânios partidos
E os miolos esmigalhados
No solo calcinado.

Magua de Guarionex,
Marien de Guacanagari,
Maguana de Gonabo,
Xaraguá de Bechechio
E Higuey de Higuanama,
Reinos da Ilha Espanhola,
Outrora ricos e populosos,
Fecundos e abundantes,
De altas montanhas
E férteis riachos e ribeiros,
Tão grandes como o Ebro,
O Duero e o Guadalviquir,
Restaram-te somente
Tuas mulheres violadas,
Teus príncipes enforcados,
Os golpes de espada,
Os rumores de tantos prantos,
De tantos ais e gritos de pavor!
Restaram-te as lâminas perfurando
Os ventres grávidos,
Gargantas degoladas,
Os cães do preclaro comandante
A estraçalharem teus filhos,
As apostas cruéis sobre quem
De um só golpe de espada
Abriria um índio ao meio!
A ti, América, restaram somente
As chicotadas, as bastonadas,
As bofetadas, os socos e as maldições.

Sangrentas matanças nas ilhas
De São João e de Jamaica,
O sêmen corrupto
Do estupro e do assassínio
Na ilha de Cuba, do grão-senhor Harthuey.
Enfim, Neruda tinha razão!
A ti, América, restaram somente
A espada, a cruz e a fome!
Homens reluzentes
Que só conseguiam grunhir:
“- Donde está la plata? Donde está la plata?”
E a peste, e a morte e o terror
Que acompanhavam teus algozes!

De Nicarágua à Nova Espanha,
De Cholula à vila de Tepeaca,
Das províncias de Tupeque,
De Ipilcingo e de Columa,
De Guatamela, no mar do Sul,
A Naco, Honduras
Ou Guaiamura, no mar do Norte,
Sangue, tripas e extermínios
Consagraram tantas hóstias
Entre cânticos e louvores entoados
Sobre teu solo já abençoado, América!
Solo da onde brotou também
A carnificina e a perfídia,
A dissimulação e a mentira
A tirania e a devastação
Na prisão de Montezuma,
Na destruição de Viclatã,
Nas parturientes e velhos
Lançados às fossas
De estacas pontiagudas,
No escárnio do comandante
Que queimou os teus senhores,
Dizendo prestar-lhes homenagens.

A ti infligiram malditos estancieiros,
Terríveis calpisques,
Vis mineiros
Sedentos de ouro vil –
Eldorado manchado de sangue –
Malditos
A trucidar, a destruir,
A injuriar, a perturbar,
A prejudicar, a inquietar,
A atormentar, a oprimir a tua gente,
Enquanto se persignavam
Viciados, corrompidos
Desonestos e desordenados
Como um certo João Colmenero
Em Santa Marta.

Oh, pobres almas aflitas
Em tormentos, em angústias,
Em tristezas e aflições,
Oh, pobres almas amarguradas
Sob o jugo de mil aborrecimentos,
Sob o martírio de loucos enraivecidos,
De furiosos inimigos
Como a tenra carne estraçalhada
Entre os cornos de touros enfurecidos,
Como presas amarradas
A lobos, leões e tigres esfaimados –
Doze milhões de índios trucidados,
Quinhentos mil Lucaios expatriados,
Três mil léguas de terras,
Repletas de gente, arrasadas, desoladas.
Só Pedrarias, qual um lobo esfaimado
Que se lança sobre um rebanho de ovelhas pacíficas,
Tornou desertas mais de quarenta léguas,
De Darien à província de Nicarágua,
Matando, destruindo, queimando,
Seqüestrando, torturando, defraudando,
Roubando, aniquilando,
Desolando tudo e todos,
Tantos e tão grandes reinos
Desde o ano de 1504.

Oh, quantos órfãos deixados para trás,
Quantos homens e mulheres seqüestrados,
Quantas abominações execráveis,
Quantas calamidades e angústias,
Quantos suspiros e vagidos,
A liberdade roubada,
O corpo e a alma assassinados,
Os templos profanados
Por demônios, súditos
A servirem quem vive
De carne e sangue humanos.
Oh, toda tua riqueza
Na mão de gente iníqua,
Dos agualizes do campo
A perseguir e a caçar tua gente nas montanhas,
A manter toda a terra
Sob comenda cruel e tirânica
Todo o teu povo como se fosse
Paus, pedras, cães ou gatos
Vergastados com anguilhas, até a morte,
Por teus carrascos!


Oh, malditos e desnaturados
Que obrigavam reis e senhores
Homens e mulheres,
Crianças e velhos,
Tornados escravos e cortesãos,
A trabalharem dias inteiros, a fio, sob o sol,
Sem direito a descanso, água ou comida.
Malditos desmesurados
A separar famílias inteiras,
Maridos de suas mulheres,
Pais de seus filhos,
Mães de seus rebentos,
Tornando a vida tão desesperadora
Que as próprias mães
Esganavam e matavam seus filhos
Ou tomavam ervas para abortar
Ao sentirem-se grávidas.
Malditos responsáveis pela morte
De mais de sete mil crianças
Na ilha de Cuba, pela partilha
E pela fome de todo um continente,
Por tantos índios doentes,
Caídos pelos caminhos
Na desesperada tentativa
De encontrarem o caminho de volta para casa.

Oh, América de Panuco e Jalisco,
Do Reino de Iucatã
E da província de Santa Marta e Cartagena,
Da Ilha da Trindade ao Reino da Venezuela,
Dos Grandes Reino do Peru e de Granada,
Teus rios limpíssimos de súbito
Tingiram-se de rubra cor,
Teus campos férteis e formosos
Tornaram-se açougue de carne humana,
Alimento para abutres e soldados.

Não houve nem haverá
Tribunal que os condene,
Ação ou julgamento que reparem
Tamanho dano e destruição
Contra aqueles que diziam matar por direito.
América, não há quem te restitua
A riqueza roubada,
A glória perdida.
Agora, há somente
Um paraíso destruído,
A sangrenta história das matanças,
Tua nudez saqueada
Ante os mercados internacionais.

E hoje...
Hoje eu não vejo as edificações modernas,
Não vejo os autos passando velozes,
Nações fantasmas e a Plaza Mayor!
Não vejo conquistadores ou libertadores,
Pedro, Cortez, Alvarado, Montejo, Bolívar.
Vejo somente a História General de las Índias,
Generais e usurpadores!
Terra escravizada, grilhões nos meus pés,
Canudos!
Vejo somente o que restou
De um ato de violência,
Os filhos do estupro e da destruição,
As ruínas de Tenochtitlan,
Tua história, floresta e povo
Estarrecidamente dilacerados, América!