domingo, 25 de outubro de 2015

Chuva

Chove,
Faz mau tempo
E, no entanto,
Não há
Nuvem no céu.

Chove tanto,
Bocas, luas,
Árvores secas,
Nuas
Aos meus pés incréus.

Chove,
Torrente
Sobre minha cabeça
Sem guarda-chuva
Ou chapéu.

Chove,
Chuva forte
Ou miúda,
Chove
Guerrilhas e disputas.

Chove
De um céu mavorte
Chacinas e mortes.
Chove porque
Somos todos réus.

Chove
Contra o céu
E as gotas de chuva
Enchem-lhe o cálice
Com mares de fel.

Chove
De céus cruéis
O consumo
Que nos determina
A vida e o lucro dos cartéis.

Chove
De um céu sem céu,
Sem lua
Ou firmamento
Ao canto do menestrel.

Chove!
Chuva, queima
De pântanos
E sistemas,
Imenso fogaréu.

Chove
Dívidas, cifras
E despesas,
Chove monstros
Da chuva e da beleza.

Chove
Pouco salário,
Descontos,
O prejuízo acionário
Sobre o povaréu.

Chove
A solidão
Dos sobretudos,
O labéu de impostos
E tributos.

Chove
Contra nossos gritos
O mármore
E o granito
De vetustos mausoléus.

Chove!
Chuva – brasa,
Desespero
Que desaba
Dos arranha-céus.


sexta-feira, 24 de julho de 2015

Paraíso perdido

O paraíso
Nunca foi perdido
Nós é que vamos
Perdidos nele.

A vez primeira
Em que me tornei
Um passarinho
Foi naquela jabuticabeira.

Foi de manhã
Num domingo
Quando me tornei
Ainda mais lindo.

Beijo o mundo
Inocente
A tudo pertencente
Beijo-o álacre
Sem nenhum milagre.

Tomo-me
De tamanha simplicidade
E sinto-me
Tão jovem
Que já não tenho idade.

Meu presente
São os longes
Que não vivi outrora
Por isso me sinto
Tão ausente
Solto em todo o ente.

Meu passado
É tão próximo
Que o já não lembro.
Fiz dele um desenho
Que ora apago,
Ora xilogravo
Nas asas de um pássaro,

E o futuro dos homens
Não me angustia
Ou consome
Se resume a este dia
A tudo o que é
E some.

Cobras e lagartos
Conversam comigo.
Como todos os frutos
E nenhum é proibido.

Passo por corredores,
Estradas e escadas
Sentindo o rasto
De lavanda e gasolina.
Trepo com pretas e polacas
E faço negócios da china.

Sou um novo adão
E ando nu, ao léu,
Nas asas de um avião
Ou das borboletas
A adejarem
As flores de um vergel
No paraíso perdido.

Bebo de todas as fontes.
Mato aqui
Toda a minha sede e fome
A beijar liliths, santas e marias,
A dar festas, risos e alegria,
A brincar com diabos e meninos,
Os mais belos que já vi.

Ter medo de quê
Se jamais saberemos
Se o boticário nos preparou
Um perfume ou veneno?

Nada me impressiona
E fico atento,
Sensível a tudo
Que, visível,
Me emociona,

Porque é bom
Ouvir as ondas
Batendo no cais,
Amar, cantar
Sorrindo,
Para depois morrer
Como os pardais
À beira do mar,
À beira do lindo.

sábado, 11 de abril de 2015

Poema para os homens futuros

A grama era verde,
O céu era azul
E quanto mais ao sul
As flores rebentavam,
Todos nós nos rejubilávamos
Porque ainda havia flores nos canteiros.

Havia relvas, matas, florestas,
Montanhas verdes
E imensidões cerúleas
Que todos os dias
Rasgavam-se ante os olhos
Para nosso prazer e visão.

As abelhas zuniam nas colméias
E fecundavam azaléias e bromélias,
Levando por toda a parte
A cor, o olor e o estio
De verões e primaveras,
De prados e campos
Onde ziniam as cigarras.

Havia a grama e o céu
E como era verde!
E como era azul!
Sobre lírios e girassóis
Perfeitos e exatos
Para nosso deleite e agrado.
Odoríficos, exalavam as fragrâncias
Mais intensas e desejadas
Que nos faziam amar
Mesmo diante da morte e do nada.

Os rios corriam com a força dos primeiros anos,
Abrindo cânions e vales,
Formando deltas e bacias,
Pântanos e lagos
Onde se ergueram
Cidades, fortalezas e palácios.

Os glaciares eram muito brancos e nítidos
Como o são os mares de gelo de Europa,
Lar de ursos e focas
E onde são mais brilhantes as boreais,
O luzido das polares
Sob intensos ventos austrais.

Grossas massas de gelo
Expandiam-se e recuavam
Deixando na rocha sulcos profundos,
Testemunho das eras,
Geleiras e rasgos
A esculpir penhascos e geografias.

Havia um tempo
Antes da dúvida e do medo,
Antes do chão calcinado de indústrias,
Do degelo e das fontes que secaram;

Havia um tempo
Em que o ouro só pertencia às estrelas
E as matilhas uivavam e ganiam
Para lua como nunca se vira antes
Enquanto Lucy contemplava o céu
Repleto de diamantes;

Em que enormes lagartos e feras
Deram origem aos pássaros
E peixes e insetos marinhos,
A anfíbios e sapos,
A besouros e térmitas.

Havia um tempo
Em que a inocência não era mais
Do que eras e eras
Que ficaram para trás
Junto com deuses da terra e do ar
E com um mundo ígneo,
Natural e físico.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Eis

Eis a cidade dos que não pensam mais,
Dos que são apenas coisa
Que não julga ou medita,
Que não chora ou grita
Nem olha para trás.

Eis enfim a sublime verdade
Anelada por tantos,
Por monges e abades:
O ser infenso ao engano
E à maldade.

Eis o fim de toda a divisão,
De sentir-se descontínuo,
De procurar, aflito,
O que é contínuo
No seio breve da paixão.

Eis o fim
De procurar-me em tudo
E só encontrar-me em mim
Perdido, sem deus
Ou serafim.

De julgar tudo
No pensamento
E não ver que
Todo o juízo
É um punho violento
No espírito
Repleto de certezas
E tormentos.

Que todo rosto,
Seja o da deusa
Ou de um menino,
Tem o mesmo destino
Que o das nuvens
No firmamento.

Eis o fim
De toda a procura,
Para enfim nos tornarmos
Memória, lápide
Ou escultura.

Eis o fim!

Fim da imensa jornada,
Da clausura do eu,
E se tornar coisa insofismável,
Muda e quieta - breu
No espírito do nada.