terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Jardim

Neste jardim em que há muito
Não cultivo, passo ou cuido,
Quero plantar, pôr botas
E mexer na terra,
Lançar fora
Seixos e abrolhos.
Nele quero labutar,
Reconstruir minha sebe
Ver minha gota de bile
Irrigando a terra.
Quero regá-lo pela manhã
E segá-lo com afã.
Quero levantar bem cedo,
Preparar meu espírito,
Pegar na pá e no ancinho
Cuidar do solo maninho
E não deixar que o sono
Prolongue o verão e o estio
Para despertar minha esposa
E dar bom exemplo ao meu filho.
Não quero ver de novo
O trabalho perdido,
O mato crescendo
E o espírito alquebrado
Sem saber recomeçar.
Assim quando a primavera chegar
E eu já estiver morto,
Depositem no meu túmulo
Tanta rosa e gente vingadas
Que um dia disseram fanadas.

domingo, 22 de novembro de 2009

Bonde

Meu bonde que aponta além
Já vai passando bem antes
Do horário de que é refém.

Vou correndo pela via,
Com ambos os pés feridos
Por calos de mais um dia,

Ouvindo o rumor dos corpos
Proliferando-se anônimos,
Nesta cidade de mortos!

Mas, corro e chego de vez
Passando em cima das covas
Dos mortos sem ano ou mês,

Dos que vão pelas calçadas,
Passando pelos semáforos,
Entre sombras apressadas.

Vou pela rua bem vivo
Sentindo no peito ofego
Coração nunca cativo,

Pisando no asfalto duro,
Rosas fanadas num chão
Só de ratos em monturo,

Pisando essa rataria
Que, contra tanta miséria,
De certo, nada faria.

População que consente
Que o tempo todo lhe mintam,
Sempre farta e tão carente.

Sim! O bonde vou pegar
Junto a Prometeus e Sísifos,
Que nunca aceitam estar

Escravos da profissão,
Presos às roupas e à classe
Da falta e da solidão;

Que nunca aceitam estar
Como os que voltam pra casa,
Bovinos, de par em par.

Gente que pensa que assento
Terá sempre garantido,
Mas que é folha, e leva o vento,

Gente que vagueia a esmo,
Pelos carris do vagão
Carregado de si mesmo,

Sem ver que vamos tomar
Dos mortos ainda em vida
Nosso direito e lugar!

Daqueles que em cemitério
Transformaram suas vidas
Sem decifrar-lhe o mistério.

Inês

Ó Inês, a morta,
Em mim tu vives
Febril e plena.

A sempre-viva,
A morta-viva
Tu és um entre.

Tu és um ventre
Materno e triste
Que quer parir-me.

Tu és lugar
Sem locus certo:
Entrelugar...

Pra sempre vives
Em quem se move
Febril, partido –

Inês de Castro,
Rainha póstuma,
Mesquinha nunca!

Inês é morta!
Mas não aqui
Em peito frágil.

Inês é viva!
Em quem sem fé,
Sem fé e amor

Só traz grilhões,
Um corpo asceta
Que se amesquinha,

Que espada alguma
Jamais sentiu
Na tenra carne,

Um corpo asséptico,
Que em vida ainda
É quase morto.

Inês Rainha,
Com quem caminha
Tão só, perdido,

Tu vais cantante
Tu vais cortante,
Mulher tão trágica

Em mim, o mudo
De corpo ocluso
Tão pouco lido;

Em mim, sem canto,
O quase morto
De tumba em tumba.

Entanto, tu
Embora morta
Na escrita vives.

Inês tão viva,
Malgrado morta,
Me faz teu Pedro!

Defunta viva,
Tu te coroas
Na minha vida

De vivo morto
Que quer ser pleno
Ainda vivo.

Casal

A Dani com amor.


O melhor que fazemos e pensamos
É o que podemos dar-nos, frágeis ramos
Em meio a tiros, becos e fuzis
Na cidade onde a vida é por um triz.

Ser e amar sobejados de reclamos
É um risco, mas aqui nos enleamos
E nos amamos loucos nos perfis
De rostos fractais, de chuva e giz.

Fingidas faces? Corpos encenados
Debaixo dos lençóis de linho e sangue,
Em meio à tanta gente morta e exangue?

É o que somos – atores enganados
Co’as máscaras partidas por cidade
Anônima que nosso quarto invade.

12.06.2009.

Ladrão

Um ladrão com arma
De grosso calibre,
À noite e sorrateiro,
Invadiu-me a casa.
Vasculhou-a toda,
Armários e gavetas
Tão impetuoso,
Hábil invasor,
Que até do cofre,
Atrás de um dos quadros,
Revelei-lhe o segredo.
E ereto ante a mim,
Pôs-me então na boca
A arma que tinha
Na mão empunhada.
E assim dominada,
Sem palavra alguma,
Deixei que invadisse
Outros interiores.
No fim, foi embora,
Largando-me ali
Estática e nua
Toda revirada,
Indenunciável,
E aguardando calada
Que então retornasse,
Acompanhado de outros,
Para novos delitos,
Cativa que sou
Agora de toda
A sua quadrilha,
Aprendizado do crime
Para também integrá-la
E do alheio roubar
Gozosos delíquios.