sábado, 15 de novembro de 2014

Minha alma

Minha alma
É tão pobrinha
E a tanto tempo definha
Que já lhe preparei funeral.
Espero logo que morra
Como a andorinha
Ou os bem-te-vis
Numa revoada
Matinal.

Espero que logo morra
A minha alma
E leve consigo
Todas as minhas mágoas
E me deixe em paz, vivo
A transparecer, enfim,
Uma súbita calma.

Ah, minha alma,
Vá embora
E leve contigo
Esta face que só chora,
Esta boca que só ora
E não entende que a vida
É o instante, o agora.
É uma boca
Que nos devora
Na íris do sol,
Na pétala da rosa
Ou na luz das nebulosas.

Ah, minha alma,
Deixa-me,
Pois não sou como tu,
Etérea e alva,
Pois sou este corpo
Sujo,
Lava que arde
No escuro.

Ah, minha alma,
Vou-me excomungar-te.
Tua vais para o céu
E eu para vala.
Tu és a cabala
E eu pouca coisa,
Quase nada.
Melhor assim;
Não há nada o que me valha
E vivo ao léu
De quem não ajunta,
Só espalha.
Separar-te-ei
Do meu pensamento,
Para semear-te
No vento.

Ah, minha alma,
Quando me veio o Diabo
E por ti
Ofereceu-me
Reinos, ouro, prata,
Eu apenas lhe disse:
“- Tome-a de graça.”

Ah, minha alma,
Te desejo
Que sejas feliz,
Que voltes
À lama,
Ao barro
Da onde vim,
Que de mim
Te evoles
Qual fumaça
De um cigarro,
Que vires
Uma dócil avezinha,
Branca pombinha
A voar livre, livre
Para longe de mim,
Para que, enfim,
Eu não me aprisione a ti
Nem tu, a mim,
E eu me torne
Alguém
Que vive, vive, vive
A romper
Todos os gradis.

Ah, minha alma,
Deixa-me desalmado,
Sem nada, ninguém,
Sem anjo ou juiz
Ao meu lado,
Porque como tu
Eu também
Quero ser livre e feliz.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A verdade

A verdade
É uma caixa vazia
Onde depositamos
Qualquer coisa,
Anseios, vontades
Quando enfim
Encontro-te o seio.

A verdade
É uma caixa de Pandora,
Tudo pelo qual
Outrora
Lutamos,
Julgamos
E hoje jogamos fora.

A verdade
E um monte sinai,
Rocha ígnea
De grão fino,
Granito,
Muralha contra
Árabes e beduínos,
Pedra do judaísmo,
Fogo a queimar
O coração
Do idólatra
E do peregrino.

A verdade,
Rubus sanctus,
Ardente,
Lar socrossanto
Para monastas,
Sarças e serpentes
A seduzir-nos
Com tábuas
Para o ocidente.

A verdade,
Arquitetura
A pensar-se única,
Pura, o piloto
E o leme
Quando não passa
De corte, fratura,
Episteme.

A verdade,
Representação
De um mundo
Já representado,
Ilusão, machado
A amputar
A própria mão
E o passado.

A verdade,
Descoberta
Após jejuns
E orgias,
Caverna,
Domus aurea,
A natureza
Ao ver-se coroada
Por láureas
De mortal beleza.

A verdade
É um sol ao meio-dia,
Em pleno zênite
A abrasar-nos
Com ferozes ideologias,

Estrela, signo
A despontar
E morrer
Com constelações
E asterismos.

 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Isto

Deixei de ser cego
E tudo ver
Quando nada vi
Por nada haver,

Quando percebi
Que o que existe
É, e não é
O que desejo e quero,

Quando entendi
Que se houvesse
Paraísos, cidadelas,
Eterna messe

Mataria o que existe
Pelo preço de quimeras,
Por vãs promessas
Onde tudo pereceria,

Pois tudo
Só nos é tudo
Porque detrás
De todo o manto

Só há o breu
Do nada e do escuro,
O silêncio cerrado
E o espanto

Que entretecem
O meu canto
E me subtraem
A luz, o Deus e o encanto,

Pois estar na luz
Em iluminação
É poder ver
Na escuridão.

Deixei de ser cego
Ao compreender
Que por detrás
De tudo o que existe,

De tudo que nasce,
Vive, morre
E se refaz,
Nada resiste

E é por isso
Que tudo o que existe
Não é o caos ou o que creio,
Mas ordenado e perfeito,

Jogo, dado
A erigir
O fado e a beleza
Dos Senhores de areia,

Tudo no todo
Sem centro
Ou aranha
Apenas teia,

O fora e o dentro,
Isto que tudo
Contém
E apanha,

O que chamamos
De vontades, desígnios
Mas que não passa
De algo indistinto,

Alheio,
Por isso lindo
Como bolas
Num sorteio,

Caso contrário,
Não estaríamos aqui
E nem teria visto
Tudo o que vi.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Hino

Tenho a boca amarga como o fel.
Se eu pudesse, matava todo o Israel
E irromperia os portões de Ishtar
Coberto de glórias como o rei Senaqueribe.
Meu coração é um imenso mar
Repleto de fúria, retóricas e diatribes.

Minha cáfila segue até Damasco
Em busca dos amigos Iosef e Arafat.
Há muito o que fazer, lutas e combates,
Enfrentar o cacto, o cardo e o carrasco,
Expulsar daqui esses cruzados
A profanar mesquitas, reinos e sultanatos.

Cheguei a tempo, cheguei primeiro,
Sou do antigo Povo do mar,
Velho marinheiro, tenaz guerreiro,
A Arábia é o meu lar,
Golã, Sinai, Sidon, Gaza, tudo meu!
Sou pai de otomanos e filisteus.

Guerreio desde 1967,
Por pouco não dei cabo
De Ramsés e Josué.
Ninguém jamais me abalará a fé.
Vencerei os cristãos e seus diabos,
Jerusalém não é de Iavé!!!

Ó quão bela és tu,
Minha terra tão querida,
Faixa de Gaza, toda a Palestina.
Eu te canto mesmo derrotado e nu,
Pois sei que Omar ibn al-Khattab
Um dia retornará para nos restituir a Medina.

Já estive perdido, longe de Ascalom,
Sem poder contemplar o Hebrom.
Não sigo a nenhum grupo mais,
OLP, Fatah ou Hamas.
Tenho o espírito dos Macabeus,
Sou do Éden de fenícios e arameus.

Esta terra nunca esteve vazia,
E ela jamais será tua.
Vê o quarto crescente, a lua!
Ela anuncia o dia
Em que retomarei o Iêmen e Bagdá,
Em que me tornarei faraó e aiatolá.

A força do Eufrates e do Tigre
Inunda o meu coração
Que deseja apenas ser livre.
Nenhum rei, Tumtósis ou Salomão,
Irá tomar-me, por tratado ou guerra,
De novo a minha terra.

Entoarei o hino de Gibran,
Às margens do lago Ram.
Dormirei sob os cedros do Líbano,
Sentindo o olor do sândalo e do olíbano,
Enquanto contemplo a Jóia do Oriente, o Negev
Engolindo ocidentes e almocreves.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Smells like a teen spirit

Eu me lembro
Das canções que ouvia,
Dos clipes que via
E de me sentir
Como o vocalista
Do Nirvana
Jurando não ter
Arma ou lembrança.

Eu me lembro
Do que vivi.
E de como chorava
Pensando nas meninas
Que eu amava,

De como rezava
Pedindo a Deus
Que me desse com elas
A paz de um himeneu
E me livrasse
Daquela cela
De onanismos
E breu.

Eu lembro
Que eu era só
Um menino tímido
Com os sonhos
De um libertino
E que nunca fui
Puro, impoluto
Ao som de prédicas
E hinos,

Mas ardente minuto
Louco para beijar
Os seios da mãe
Do absoluto
E alcançar o nirvana
No regaço
De quem ama.

Eu lembro
Como pensava,
De pau teso,
Em seios e grelos,
Como me esfregava
Nas coxas da empregada,
 
Como me curava
De minhas taras
Com outros meninos
No chuveiro
E depois ia com eles
Chupar sete-belo
E bala soft
Nos recreios.

Eu lembro
Que me curava
Com muito açúcar
E coca-cola
Sentado debaixo da árvore
No meio do pátio
Da escola

E que nas aulas
De raiz e cosseno
Eu só queria,
Como em Bandeira,
Tomar ópio e veneno.

Eu me lembro
De nunca ter
Raspado a cabeça
E sempre me sentir nu,
Sem defesas,

De como nadavam
As meninas,
De como furavam,
Em vigorosa natação,
A água cristalina
Enquanto eu sozinho
Via tudo
Segurando minha prancha
Como um escudo
Numa ilha.

Eu me lembro
De vestir o meu quimono,
Aflito e timorato
Para o exame de faixa,
E nunca me sentir pronto
Para enfrentar o garoto
Que aplicava uchimatas.

Eu me lembro
Daquelas tardes
De melancolia,
Das lágrimas furtivas
E mal sabia
O quanto eram iluminadas,
Porque vivia preso
A gaiolas e grades
Do medo,
Porque me sentia
Sempre o mais feio.

Eu lembro
O quanto me sentia
Frágil e pequeno,
Ave sem asa
Ou brisa,
Sem coragem
De sair, de voar
E correr pelas ruas e praças,

De segurar minha bola
E não ter ninguém,
Nenhum amigo
Que ma chutasse de volta,
Que brincasse comigo.

Eu me lembro
De estar sempre sozinho
E de ter me tornado
Esse homem calado
E comezinho

Que ainda
Ouve canções
Do Nirvana,
Repleto de lembranças,
E procura namoradas
E amigos
Para voar livre
Como os passarinhos
E não me sentir mais
Como um menino.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Quando destruíram a General Pedra

Quando destruíram a General Pedra
Nunca mais pude comprar.
Não havia mais secos e molhados.

De certo, virou pedra, cascalho
Para algum aterro,
Fez crescer ainda mais o nosso erro.

As águas rolavam límpidas, cristalinas
Pelos canais do aqueduto.
Hoje enegreceram
Tornaram-se um rio escuro e difícil
De pontes, estradas e viadutos.

Da Rua do Ouvidor ia-se ao Leblon
Colher camélias no quilombo
E na chácara do Seixas,
Flores que enfeitavam
O vestido das princesas
E a lapela dos barões.

Havia Carlos Cachaça
E sua menina
O Observatório Nacional
Da onde víamos
A estrela vespertina
E Einstein refletia
Na astrofísica.

Havia a feira livre da Lapa,
A praia de Benfica,
E do Russell,
A da piaçaba
E da Maria Angu,
O gol de Clavert
No primeiro Fla Flu.

Ó Rio de Janeiro,
És meu espanto e gozo!
O desespero
Dos que morreram de tifo
No calabouço,
Os mortos do Rebouças,
O passeio, a viração e o riso
No Palácio do príncipe mourisco,
A fé nos sinos
E na roleta dos cassinos.

Ó cidade totêmica,
Cresces e te reproduzes
Endêmica,
Proscreves minhas prescritas memórias,
Lanças-me
Ao esquecimento e à glória.
És muitas e sempre a mesma,
Trama e sistema
A engendrar a História
E a erigir meu poema
Como teu totem e apostema.

Ah, nada sobrou
Das praias que desenhavam
E te defendiam o litoral!
Nada sobrou
Do antigo Senado Federal!
Nada da Casa Martinelli
E do Mercado Municipal!
Tudo abaixo pela febre
Americana por carros!

Ah, mas dentre todas,
És a mais bela,
Sempre serás a capital federal!

Laura Alvim vestia-se
Com o mais fino pano e cetim,
Para ver o Zepelim,
Deixava, no pátio de sua casa,
Que os vendedores
De pipoca e amendoim
Guardassem as carrocinhas,
Enquanto Santos Dumont
Apitava partidas de tênis
No Clube do Fluminense.

Íamos felizes
Em dias solarengos
Ao Cricket Club
Torcer para o Flamengo.

Terra amistosa
De sambistas e malandros,
De pretos velhos e Normandos
Sem esses vândalos
Que hoje andam como loucos,
Matando e roubando
Aos bandos.

A Senhora Santos Lobo
Tornou-se memória, parque, ruína
De fotos, festas e flashes,
De damas e valetes,
De lobos e rapinas.

Tomava-se o expresso da Gávea
Na esquina da Rua do Ouvidor
Com a Gonçalves Dias
Passava-se pela São Joaquim
Até a Rua São Vicente
E o Largo das Três Vendas.

Ia-se do centro à Ponte Táboas
Em apenas uma hora.
Hoje engarrafo na Voluntários
Num bonde repleto de mágoas.

Derrubaram a praça onze!
Tinham razão Herivelto e Grande Otelo.
Nem passeamos mais
À sombra do Castelo.
Empreiteiros e burocratas
Puseram tudo abaixo
Até a casa da Ciata.

Hoje são longas as horas
Até o Largo da Memória
E quando lá desço
Sinto-me como o Chafariz de Montigny,
Sem o Largo do Rocio,
Estrangeiro, abissínio
No frio tropical do seu desterro.

terça-feira, 1 de abril de 2014

O que te fizeram

O que te fizeram naqueles porões?
Horas terríveis de murro e delação...
A quem enfim te entregarias,
Após tanto resistir, senão a teus verdugos?
Conheces bem a sola dos coturnos
E que a carne sempre trai qualquer vontade.
No eletrochoque, o corpo contorce-se,
A língua revira-se e a boca que só grita
Súbito, num espasmo, conta toda a verdade.

O que te fizeram naqueles porões?
Tu eras um homem bonito,
De pele trigueira, cabelos negros e revoltos.
Um dia foste diferente do que tens sido,
Tempo de antigas fotografias
Em que não exibias o olhar terroso,
Destituído de toda a esperança e alegria,
Em que a noite ainda não te roubara o gozo,
Muito menos tua crença e utopia.

O que te fizeram naqueles porões?
Já eras assim quando lá te lançaram?
Quando nasci em 1976,
Teus olhos já eram dois lagos de pez,
Tua boca calava terror imenso
Que vinha de celas, fronteiras e muros.
Havias sumido de todas as células, bandeiras e ruas,
Já eras um pétreo monólito de silêncio
E me tornaste carne da carne tua.

O que te fizeram naqueles porões?
Dizias ter perdido o bonde e a História
Ao assistir os mesmos ratos dos porões
Agora em plena luz do dia
Ditando aos teus filhos uma oratória
Repleta de atraso e carestia,
Ao ver que te tornaram o país
O próprio chão que te devora,
O filho que te odeia e maldiz.
 
O que te fizeram naqueles porões?
Depois foram só rezas e sermões
Por terem te arrancado tudo
Menos a vergonha e a culpa
Que te tornaram a consciência uma mão suja
Que hoje queres extirpar a todo custo.
Rendo-me enfim à prece escusa
Ao ser e país que teus torturadores
Mataram em meio a gritos e horrores.

O que nos fizeram naqueles porões?

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A voz

Quem é esta voz que fala comigo
Nesta tarde sem amada ou amigo?

É algum louco a gritar?
É o canto de Zaratustra

Que me esconjura
De toda a Literatura?

É o corvo a grasnar
Sobre os restos de um altar?

A voz do idólatra e do iconoclasta,
Uma noite repleta de fantasmas,

Aquele louco alvedrio
Que levou Hamlet ao assassínio?

O gênio, a musa ou Mefistófeles
Nesta tarde sem fé, esperança ou padre,

Ou o canto do meu peito
Quando me encaro num espelho?

Meu corpo confrange-se. Salto da cama
A pressintir todos os desastres,

Corpos que se lançam em chamas
A encarar a face da insânia,

A barca sem Caronte
Para nos atravessar o Estige e o Aqueronte,

Abutres a bicar-nos acorrentados
A sombras e cáucasos,

Tântalo a beber um rio atro
Que escorre da nossa fome.

De pé, grito no breu
Do meu quarto:

Meu Deus!
E a voz enfim responde:

Meu deus, meu deus, meu deus
E some...