terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Perdido


Perdi-me na combustão do dia.
Fui mosca tonta dos pés-sujos,
Mariposa louca e incendiária,
Sensualidade e ávida cupidez,
Fastio feito de misoneísmo,
Dias em que habitam tardes
Quase mortas de passageiros sonolentos
Nos bancos encardidos dos coletivos.
Ah, se alguém gritasse...
Ah, se alguém se incendiasse
E se matasse e explodisse
Uma bomba feita de sangue e dor
De grito e pavor
Ante as basílicas repletas de eco
De cada coração!
Ah! se alguém se sentasse ao meu lado,
Ouvisse-me as queixas e alegrias,
E acolhesse, em compaixão,
Minhas inúteis solicitudes e favores...

Perdi-me no seio forte,
No aroma doce e fétido,
Bêbado do néctar suarento
Que se escorre dos corpos da estiva,
Do soro enjoativo
Dos escritórios e repartições,
Da fadiga odorífica das noites de verão,
Dos pagodes incansáveis dos subúrbios
E do carrossel orgiástico dos puteiros.
Perdi-me no seio da grande cidade
Que grita contra si
Na face muda e silente
Dos que retornam do trabalho.
Perdi-me com o peito arquejante,
Com todos os sentidos e pensamentos alterados
Em noite lúbrica de narcóticos.
Perdi-me sexualmente,
Com o beneplácito de Cristo,
Sem raízes ou entendimento
Na curva acentuada das estradas
Da cidade mundial.

Transviei-me em suas luzes:
Brilhei e me ofusquei entre vapores
Expelidos por canos pretos
De gargantas e escapamentos.
Incendiei-me, louco, consumindo-me,
Consumindo-te
Nas sendas do fascínio e do tédio,
Tonto da mesmice
Das caras sufocadas dos bípedes enfadados
A se rastejarem por concreto
De vidas desprovidas de sopro animador.
Perdi-me em mil cabeçadas, em milhares
De lâmpadas, janelas, caras,
Em quibes frios e enjoativos
Para estômagos ulcerados.
Perdi-me nalgum sexo doente, nalgum regato poluído,
No quilômetro da saída anunciada,
Mas lá só havia mais estrada, mais cidade.

Corri nu por vielas irreais,
Desfraldei bandeiras, organizei comícios,
Berrei no megafone, deitei na avenida
Pela qual hoje passo mudo e depurado
Por faixas, sinais, apitos e a moda.
Quis atear fogo ao próprio corpo
Para que minha miséria fosse uma tocha
Na noite espectral desta cidade
Feita de alarido e escuridão.
Já quis muitas coisas, inclusive
Que todos quisessem tanto quanto eu,
Já até, ateu, clamei a Deus, no escuro,
Sob pancadas e coturnos...
Mas só obtive a traição
De quem nunca requereu minha fidelidade,
O tumulto de uma multidão incompreensível
Atropelando-me num tropel
De concreto, asfalto, avenida, indústria e comércio.
Tornaram-me um canalha sem sonhos
Ou eu me tornei um
E agora circulo por aí, desgarrado
Nos refugos urbanos,
Ostentando na estampa da camisa
O rosto de Che
Ao lado da menina que traz no peito
Um I love New York
Ou outra que vai pela pista
De camisa vermelha com a foice e o martelo
Sobre o seio esquerdo sem ser incomodada
Na cidade capitalista!

Alguém pode me dizer
Em que lâmpada dei minha última cabeçada,
Quando deixei de dar murro em ponto de faca,
Quando passei a seviciar meninos
E a me entregar a atos masturbatórios
Com meninas de dez anos?
Aquele pulha tinha razão quando disse
Que a Babilônia é o fim e o recreio de toda a vida
E que nunca fomos trombetas ou colunas de fogo
A anunciar e proteger a Éden socialista.
Agora temos apenas esta Babel sobre nossas cabeças!

Perdi-me...
Hoje, estou em silêncio
No formigueiro de concreto e asfalto,
Arranhando a languidez do azul,
Consumido por aranha sempre a tecer, infatigável,
Dominando tudo, todos com sua sombra
E ética confusas, impondo sua urdidura cruel,
Sempre disposta a ganhar mais dinheiro,
A excluir mais viventes,
A inocular outros corações...
Dia a dia, sua rede cresce,
Ramifica-se em todas as direções,
Unindo cada ser e lar,
Cada coração e alma,
Tornando irmã toda a vida
De teia que urdiu.

Já desafiei ruas e avenidas contra o conformismo,
Esquinas e arranha-céus,
Imprecando contra carros e semáforos.
Hoje, retorno de ônibus para casa,
Fraterno a todos, em conformidade,
Compreendendo inteiramente
O cansaço e a solidão de cada classe e profissão.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Iniciação


            I


Tu que esperas o estro das cinco,
Como o inglês o seu chá
E o crente, o angelus...
Tu que esperas o estro das cinco,
Para compores alguns versos
Plangentes de amor e flor –
Vê-me! Pousa os olhos sobre mim,
No rebanho ignoto de minhas carnes!
Eu caminhava quase ao teu lado,
Entanto preferiste apreciar
O decote e a bunda de mais uma qualquer.
Vê-me! Pousa os sentidos sobre mim,
Mesmo que ainda delirantes,
Mesmo que ainda enfastiados,
Porque já não tens o que cantar.
Olha quando bocejo,
E a náusea impele-me aos banheiros infectos;
Quando reconheço tua firma
Ou peço-te o protocolo,
Após um bom dia em dias maus.
Volve teu rosto ao meu opaco e habitual,
Para teus versos encherem-se de sombra.
Vê-me! pois a lua agora
É dos cientistas e burocratas,
As estrelas há muito se apagaram
E nenhum brilho restou nestas faces, nestes céus,
Enquanto, sobre nossos lares,
Pesam monóxido de carbono, pressa
E celas esquecidas com sangue e vergonha.
Toque-me, se puderes,
Pois há muros entre nós,
Tijolos de indiferença e anonimato,
Grito abafado e delação.
Toque-me! Sinta-me! Cheira-me! Escuta-me!
Pois o poeta torto
Que te pede chaves e decifração
Tinha razão:
O amor resultou inútil,
Homens se matam feito percevejos.

Restou-te só a mim,
Indesejada companheira,
Habitual aparição – fantasma,
Enquanto caminhas solitário,
Acompanhado por tantos de nós:
Multidão.


                 II

Agora que o estro das cinco
Chegou, pega minha mão e vem!
Quero mostrar-te tudo e nada.

Não temas, demente,
Não receies a verdade;
Ela reside no desconhecido.

Vem comigo, confia em mim;
Afinal despertarás, assustado,
Babando de teu frágil sonho.

Libertarás teus versos
De musas e ideais há muito
Desfeitos. Vem, pueril!

Vês aquela que passa?
Ela não te ama! De fato, ela passou...
Deixa que se vá como tantos...

Sei que ainda guardas
Dela as parcas palavras
Como recompensa e ilusão.

Sei que ainda conservas
A lembrança opiária
Que te engana dia-a-dia...

Vês aquele que passa
Na boléia de um caminhão,
Levando fria marmita?

Foi ela que a preparou
Para a fome fria de um ser
Frio, frígido que ama na tábua fria.

Deixe que passem. Tudo passa,
Tu, inclusive. Pobre lembrança
Que nem sabe mais o que inventar.

“ - O que me resta, então,
Senão esquecer? Esquecer!
Esquecer! Esquecer!”

Vês estes comendo
Devorados pelo tempo?
Tua família: pai, mãe e irmã.

Sabes do resto?
Creio desconfiares. Desejas
Saber? Suportarás?

Claro. Não há qualquer
Melodrama; telenovela
É o que tens de melhor ao coração.

Vês teu pai? Quem te ensinou
A amar os livros
E a odiar a todos?

Ele não te ama! Alimentou-te
Por mera obrigação
Paterna e olha-te com dó.

De fato, não tentaste muito
Te tornar filho e ele, pai. Ambos nunca
Tiveram pendor para filiação.

Não importa se te amou.
Faltou-lhe a paternidade
Que os piegas têm de sobra...

Não te revoltes, nem queres...
Aceita os homens e as coisas,
Livra-te de culpa ou rancor.

Na identidade, tens os campos,
Para a tua tarefa social,
Todos preenchidos – és homem!

“- O que me resta, então,
Senão matar? Matar!
Matar! Matar!”
  
Vês esta te embalando,
Como te acalanta zelosa,
Infatigável em seu dever.

Ela te ama. Missão outorgada.
Antigo ritual tantas vezes
Repetido, signo vazio: maternidade.

Disso não tem muita consciência,
Por isso te ama, te cobra
Pode apresentar tua dívida.

E tu? Não respondas nada.
Silêncio... atrapalhar-te-ias
Com a verdade e as palavras...

“ - O que me resta, então,
Senão esquecer?
Amar e esquecer...”

E tua irmã? Lembras das tardes
Fagueiras, das manhãs primaveris,
Do efêmero fugidio?

Não, não há nada para lembrares;
Na escuridão do quarto de hoje,
Procuras uma mão, mas nada encontras...

“ - O que nos resta, então?
Nada resta!
Nada presta, irmãos meus!”

E, agora, o que tens? Fantasmas
E feridas com que dialogas,
Expostos na galeria destes versos?

Onde ficou o inefável, o mistério?
Tuas mãos contristam-se por reflexo...
Guarda estas lágrimas – pura sensaboria.

Aceitas tudo conformado,
Calas tua fúria e rebeldia,
A raiva de ti, de todos.

Solta teu grito de silêncio,
Teu canto dissonante,
Tua palavra-eco aos surdos.
  
Vê a multidão: eis uma certeza!
Tu a amas e estamos nela –
Tua amada e família também. Cidade...

sábado, 27 de outubro de 2012

É o que parece


A Antônio Cícero e Letícia Valentim

É o que parece,
Por isso tantos conflitos,
Tantos gritos e ritos,
Teogonias e preces.

Por isso tantas crenças,
A História e o Tempo,
A voz de Deus
Onde há somente
O sussurro do vento.

É o que parece,
Por isso este poema
Contra a voz cartesiana,
Contra todo sistema
Que nos engana.

Por isso este poema,
Que também será esquema
Propenso ao erro,
Se apenas for
Aquilo com o qual quer parecer-se
Mas com ele não se parecer.

Por isso tantas formas,
O anseio por ordem,
O ilusório encanto da norma,
O canto e as essências
Onde só há aparência.

É o que parece.
E não há
Como ser diferente.
É a virtude
Ou engano da mente.
O que se diz e ilude,
É o interminável museu
Dos discursos do eu.

E o que ouvi
De mais bonito
Foi uma criança dizer,
Após muito contar,
Que depois do mil
Só há o infinito.

É o que parece.
E malgrado
Alguém dissesse:
“Tudo é!”
Não estaria mentindo;
Tudo é!
E com isso se parece.

Não há como dizer
O que é o ser
E entre o que digo ser
E como aos outros me pareço
Vivo e desapareço.

É o que parece
E só ao dizê-lo
Já me traio
Pela linguagem
E mergulho
Nessa imensa viagem

De querer dizer tudo:
O que, efeméride,
Ganha breve aspecto,
Surge e desaparece,

O que não ganha tempo
Para dizer-se
Sequer coisa ou ser,
O que resplandece
Para logo perecer,

Tudo que com a vida
Se parece e que deixa
De com ela parecer-se
Quando se torna
Discurso, regra ou prece.

Tudo que é
E se torna
Uma outra natureza,
Dura empresa
Que a vida
Não mais reconhece.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Desespero romântico II


Ó
Lua, luna
Lunática,

Dize-me
Que sou tua
À minha carne nua.

Desce, te conjuro,
Errática,
Sobre seio perjuro.

Não me venhas
Com tanta gente
Que te olha descrente,

Não me venhas
Com reles vidas,
Ruas e avenidas.

Vem difusa,
Lua prolixa
Dos amantes, intrusa,

Ó
Lua, luna
Hierática.

Vem e mente,
Inunda meu quarto
Profundamente.

Dize-me algo!
Mas nada dizes
Sorumbática.

Surja-me alva!
Mas me apavora
Fantasmática

No meu quarto
Após parir-me
Um lagarto,

Lua réptil
A devorar-me
Autofágica...

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Cântico II


Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Esta árvore?
Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Este pássaro?
Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Esta montanha?
Quantas vezes
As marés já
Me raptaram e devolveram
Este mar?
Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Este corpo?
Olho agora
Eternecido
Para meu último renascer,
Para o meu mais recente parecer.
Filho,
Devo dizer-te:
Já fui,
Já fomos
O trilo
Do pássaro,
O grilo
Que tem no bico,
Já fui,
Já fomos
O seu pipilo
Ao nascer,
O pistilo
Da flor
Antes de morrer,
O silêncio
E o sigilo destas serras,
O céu
Quando me rutilo
Em nuvem, em sol
Em mar.
Porque ontem,
Hoje, amanhã
Fui homem,
Pássaro, mar,
Esta manhã
Que, em breve,
Morrerá,
O Cáspio
Ou Egeu
Nos refolhos do eu.
Já estive roto,
Todo sujo
E magnificamente
Pintado
Num vaso etrusco,
Já estive
No esgoto
E no luxo,
Mas sempre cerúleo
No âmago de tudo,
Porque a consciência
Mesmo ciente,
Se perde,
Esvanece,
Mas a matéria
Permanece,
Se atreve
Contra o momento,
É o próprio manto
Espaço-tempo,
O início,
O Quantum.
Porque ontem,
Mais uma vez
Vi a flor e a tez
Que fui, que fomos
No féretro,
No moribundo
Ou na prenhez
Do mundo,
Vi como fui,
Como um dia apareci
Antes de assim parecer,
Mais uma vez,
Antes do que sou,
Deste corpo
Esvanecer-se
Ao morrermos.
Vi que a memória
Da matéria
É a inércia
Desses montes,
Algo que jamais esquece
E guarda-se sempre
Do discurso, da prece
Ou da quimera
De quem se desespera
E se nega
Para nos impingir
Uma única vida
Eterna,
Enquanto somos tantas
Que perecem.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Vagina dentada


Vagina dentada,
Escancarada
A qualquer fluxo,
Caudal anônimo
De caras e de pênis,
Exibição e charme,
Feito artigo de vitrines,
Mas no fim: solidão,
Camada de carne,
De lábio e asfalto,
Elevando tapume alto
E muros feitos
De cimento e de murros.

A que horas deitar?
A que horas amar?
Mas sempre trabalhar,
Devorados, seta ferina
Na carne encilhada,
Inflamada ferida –
Grito, dorida anti-voz,
Abafada, contra o rito,
Pelo mito,
Pênis mordido
Por dentada vagina.

Boca sifilítica
A excretar purulenta
Pruridos, gonorréias,
Pequenas mortes
Paralíticas,
Virulentas panacéias
Contra o membro
Rígido, ereto
Em busca de afeto
Num paraíso perdido -
Teatro obsceno
De deleite e venenos.

Amor ou tesão?
Apenas fluxo!
Chafariz de repuxos
De pressa e de ódio.
Pergunta-se: - “O que fiz?”
Mas estica sempre a cerviz
Sob a camada dura
De raiva e de murros –
Ferida aberta,
Sem atadura –
Enquanto goza e mente
Semente amputada
Na vagina dentada.

sábado, 14 de julho de 2012

Cântico


Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Não inspira,
Não me importo.
Vivo assim:
Dentre tantas mentiras,
Escolho uma ou duas
Que, ao menos,
Façam sentido pra mim.
Por isso, amigos,
Se quiserem,
Me acusem de poeta cínico
Ou de ter partido
As asas do querubim.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
É mentira!
Não me importo.
Em verdade tudo transformo
Ao som da lira,
Porque gosto
De verdades mentidas
E gozo
Ao ver aqueles
Que ainda crêem
Em coisas absolutas
Na vida.

Malgrado digam:
Tu és louco!
Teu canto
É nada ou pouco,
Não me importo.
Torno-me os versos
O meu reverso
E os ofereço a todos
Sem esperar nada,
Nenhum troco
Ou que percebam
O próprio engodo.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Está morto
Ou morrendo está,
Com isso me rejubilo,
Por saber
Que componho um hino
A todos fraterno,
Que nos deixa isentos
E desnudos do fardo
De sermos eternos.

Malgrado digam:
Vives da rapina
Do dia-a-dia,
Transformas a poesia
Na nossa ruína,
Não me abato;
Escrever só nos lancina
E nos inocula
Com o mundo
E a estricnina.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Faz-me sentir
Num exílio,
Não há encanto,
Nada de sublime
No teu canto,
Não me espanto.
Não há como atingi-los
Sem antes
Cometer-se um crime,
Expor numa vitrine
Tudo o que nos reprime
Para a quebrarmos
Beligerantes.

Malgrado digam:
Só amas o chão,
O parco instante,
Não me importo.
A terra, o céu,
O sol radiante,
O corpo vão,
Tudo o que vês
Perecerá
Nesta láctea via
De fluidez.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Te vai mandar
Para o inferno,
Não me importo.
Sei que nada é fixo
Ou sempiterno
E que, como todos
Que se persignam
Com crucifixos
Ou que não crêem
Na parasceve,
Em breve,
Me tornarei pó, lodo,
Enquanto cantam
Os rapsodos.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Paideia

Buscar-me nas doutrinas renegadas,
Infensas a argumentos que somente
Defraudam quem só pensa diferente
Das lápides por muitos confessadas;

Querer-me libertado das julgadas
Verdades que sustentam o Ocidente
Inteiro, como um fardo, a fazer frente
Às formas tantas vezes rejeitadas,

É o modo de encontrar a alteridade,
Um outro que de mim resta proscrito,
Anátema, revel, um ser maldito,

Despido de qualquer moralidade
Que só condena todos, sem medida,
Ao logro que encarquilha a nossa vida.

sábado, 2 de junho de 2012

Sina


Se há algo
Que me ensina
É que tudo
Nesta vida
Sempre cisma.

Se há algo
Que me ensina
É que tudo
O que cisma
É por sina

E que a sina
De cismar
Faz a vida
Pressupor
Para si

Um sentido,
Um propósito
E destino
Presumidos
Para todos.

Mas se tem
Um sentido,
Por que cisma
Esta vida
Tão sentida?

Mas se tem
Um destino
Por que cisma
E se abisma
Esta vida?

Se ela cisma
É por sina
De não ter
Um sentido,
Um juízo,

Por saber-se
Sem propósito
E destino
Quando cisma
Em surdina.

Por saber
Que cismar
É buscar-se
Bem acima
Dos sofismas

De um destino,
De um sentido
Tão mentido
E fingido
Pelas gentes.

Pois se cisma
Malsinada
E repleta
De sentidos
Presumidos

Nos ensina,
Na verdade,
Que viver
Esta vida
É a sina

De perder-se
Em cismar,
Em amar
E a arriscar-se
Sem sentido.

sábado, 28 de abril de 2012

Velho tema

Ao meu filho


Não sei se seguro
Areia ou figura.
Não sei se teus braços
Terei sempre assim:
Abertos, erguidos
Pedindo-me um abraço.
Não sei até quando
Terás no teu rosto
A frágil candura
Que o tempo desnuda,
Arranca e fratura.
Tormentas se formam
E agravam meu medo
De cedo perder-te,
De ver-te tragado
Por frio lajedo,
De ver-te levado
De mim, indefeso,
Tão súbito e quedo.
E embora te veja
Brincando e saltando
As ondas e a espuma
Que beijam teus pés,
Eu sinto, aziago,
As noite e brumas
Que logo virão,
Eu sinto pressagos
Os corpos de agora,
Que logo teremos
O mesmo destino
Das vidas de outrora.
Por isso não sei
Se areia ou figura
Seguro não mãos,
Por quais desventuras
Enfim passarei,
Por quantos extremos
Nós dois passaremos,
Se a paz do teu riso
Com que me jubilo
Será sempre um hino
Tangendo meus dias.
Por isso não sei
Se todo o meu zelo
Não passa de apelo
Que não vai deter
Teus louros cabelos,
O rosto e a figura
Da vã carnadura
Dos nossos momentos.
És folhas ao vento!
A imagem no espelho
Na qual deixarei
Meu lábio, meu beijo,
O fundo desejo
De em mim te reter,
Teimando suster,
Quimera, loucura,
A areia e a figura
Que eu hoje seguro.

sábado, 7 de abril de 2012

De volta para casa

I

Bocas desmaiadas,
De sono escancaradas,
Viajam de volta para casa
Avenida afora,

Enquanto
Cabeças pendidas,
Em sonolência contrita,
Dormem o sono dos justos,

Nessa hora
Que se prolonga
E devora
O resto do dia
E das horas.

II

Vogam,
Em meio a lixos
E detritos,
Antigos destroços
De outrora;

De viagens,
Tratados, ilhas
E tordesilhas,
De tantas linhas,
Faixas, buzinas e sirenes
Dos que voltam para casa
Infrenes e sem leme.

Vogam
Tiros,
Gritos e vozes
Em meio ao martírio
De quem morre anônimo
Sem nunca ter lutado
Contra mouros ou assírios.

Vogam
Santas cruzes
E arcabuzes
A perpetrarem
O vilipêndio
De missas
Estandartes,
E incêndios,
Dos massacres
Que catalogam
A cidade.

III

Tudo que é perene
É só mais uma forma
Do provisório
Neste empório
Que é a história.

Por isto este mar,
Há muito seco,
Embora infindo,
Que guarda seus ecos
E os endereços
Marítimos ou citadinos
De tantos vascos,
Marcos, pólos e gamas,
Zhengs, vicentes,
Pessanhas, janszs,
Mendonças, lischontens,
Nunes, nunos e homens,
Sem glória e sucesso
Que voltam para casa
De mares, bares e azares.

Por isto este mar,
De quem
Não conseguiu regressar
E que hoje,
Sem canto ou narrativa,
Retorna para casa,
À deriva,
Em meio a vagas
Que aportam,
Em chamas,
As frotas soçobradas,

Lâmina
Que aflige e inflige
A chaga escusa,
Ibero-americana,
De toda uma raça chacinada,

Os becos e logradouros
De ocaso,
Esquecimento e atraso
Que não encontram
Escoadouro.


Poema modificado após ler o belíssimo "Um dia quebrarei alguns ventos do norte".

sexta-feira, 9 de março de 2012

Mulher

Ser mulher
É não querer do mundo
Jamais provar apenas
Uma colher,

Muito menos
Deixar de sofrer
A dor ao gozar
De prazer.

Ser mulher
É matar em si
Quem se troca
Por uma vida qualquer,

É ser o que se quer ser,
Mulher, desejo fundo
De jamais ser mãe
Senão de um novo mundo,

É querer ser muito mais,
Amar meninos
E vagabundos,
Poetas e assassinos,

Ser mulher
É coser
Para emaranhar-nos
Inda mais no querer,

Ser mulher:
Madalena, Lilith
Ou Helena a amar-nos
Como hiena ou menina,

Ah mulher,
São luas cheias
Tuas nádegas
E minha boca as pleiteia!

Ah mulher,
Esparjo-me
No teu seio e sexo
Sedento e gago.

Ah, e minha língua
Bebe teu gozo e saliva
Toda a vida
Que em ti nunca míngua!

E nos teus cabelos
Sorvo o perfume
Que me transporta
Aos altos cumes...

Sorvo tudo
Em longos haustos
O teu corpo desnudo
Onde me farto exausto.

É alongado espasmo
O meu gozo
É cair, transe, orgasmo,
Num fundo poço.

E quando descanso
Enfim
É porque te traduziste
Em mim...

E só descanso
Quando sei
Que foste além da colher
Que te impede mulher!

Quando sei
Que enfim
Cumpriste o teu mister
E te tornaste, sim!, a Mulher.

E o teu mister
É amar,
É querer beber
Todo o mar!

É saciar
Desejos inconfessos,
É quebrar
Os votos professos,

É rezar
Para o Diabo
E deixar que te amem
Toda, de cabo a rabo!

Ah mulher,
Que fizeste?
Estamos nus
E é a nossa nudez o que nos veste.

Mulher,
Que fizeste
Senão amar tanto
Santos e cafajestes,

A ver neste chão
No qual piso
Tudo que é sublime
E celeste?

Ah mulher!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Escrever

Escrever poesia
Como quem escreve
Um livro tombo,
Ter olho pra tudo,
Pra quem corre certeiro
Ou toma um tombo.
Ter olho pra tudo,
Até mesmo pro pombo.

Escrever poesia
Como quem chora
Ou se devora
Louco sem deus ou memória,
Culto de súplica e prece
Sem pai, pão ou perdão,
De quem não vive sem pressa
E só crê e obedece
Ao rito livro das horas
De um herege.

Escrever poesia
Onde nada é imorredouro
E tudo é sujo, sujo, sujo
Como um matadouro
Mundo imundo,
Sorvedouro.

Anotar todo nome
E a garatuja suja,
Vasto palavrório
Inútil
E o palavrão
Sempre útil
Na rua ou no escritório
Da massa inconsútil
Comedida e comezinha.

Escrever poesia,
Todo o logradouro
Ilustre ou anônimo
De gente, topônimo,
Escol, escória
Que aparece e some
Cadente
Neste livro de ouro.

Escrever poesia
Em confronto
Com um dia e breviário
De fadiga e soluço
Que nos varam, translúcidos,
Com a luz dos semáforos;
Que só nos querem lúcidos
E sempre prontos
Para labuta
E o livro de ponto.

Escrever poesia
Para gente perdida,
Sem porto ou caminho,
Homens tortos,
Dos descaminhos
Para quem não há
Guia ou oração,
Via ou confissão,
Exorcismo ou escaninho,
Nenhum livro
Seja dos vivos,
Seja dos mortos.

Escrever poesia
No meio da rua
Sentindo no estômago
Queimação, azia,
Trazendo no peito
Crônico,
Ânsia, taquicardia
E a aflição
De quem fala, fala, fala
Sem ninguém
Que lhe ouça a voz e o pleito,
De quem cansa e se cala
Na multidão.

Escrever poesia,
Códice, gravura,
Xingamento e mesura,
Pergaminho no estojo,
Página e rolo
De náusea e de nojo.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Oração

Ó Pai,
Governante angelical deste mundo,
Habitante das esferas mais sensíveis do desejo
Conhecedor íntimo dos círculos de Sophia,
Nenhum panarion te curou da nossa alma,
Nela habitas a despeito de tantos santos e heresias,
De tantas exprobações e excomunhões,
De tantas fogueiras e perseguições
Arraigado como estás em cada coração e intento.

Ó Pai,
Governante angelical deste mundo,
Senhor dos rebeldes com causa de Sodoma
Dos amantes devassos de Gomorra,
Místicos a galgar os fastígios do sublime,
O êxtase erótico do nirvana e do crime,
Ensinaste que toda a trave sobre o corpo,
Que todo o grilhão contra as formas do amor
Só nos leva à guerra, à infelicidade e ao terror.

Ó Pai,
Governante angelical deste mundo,
Soberano de toda a raça de Adão,
De todo o fugitivo e errante pela terra,
De Nimrode, poderoso caçador,
Edificador de cidades, da imensa Torre,
Ensinaste que toda a salvação
É inimiga íntima do controle
E que só pode ser salvo quem é livre para sê-lo;

Ó Pai, sim!
Governante angelical deste mundo,
Livre para comer e amar,
Livre para ler e conhecer,
Para destruir e odiar, para construir
E novamente destruir e, então, reconstruir
Quantas vezes forem necessárias o homem, o mundo
E, sobretudo, livre para matar e vingar-se
Setenta vezes sete de quem nos mata.

Ó Pai, Senhor,
Governante angelical deste mundo,
Incompreendido por todos que crêem
Nas nuvens inúmeras havidas por Deus,
Pelo demiurgo megalomaníaco deste mundo
Que, a muito custo, tenta extinguir
A centelha insondável, pó primevo e fecundo,
Que todos carregam dentro de si, Pai Nosso,
Assassino e construtor, raça dos cainitas!

Ó Pai, Senhor,
Homem demasiadamente humano
Que teve a oferta mais pura recusada,
Primícia da terra, límpida e incruenta,
Obra de tuas mãos calejadas de lavrador,
Trabalho de quem edificou todo orbe antigo:
Ur e Enoque, Sodoma e Gomorra, Babel e Babilônia,
Tebas, Nínive e Calá, Sidom, Roma e Pasárgada,
Habitante de Node, Oriente do Éden!

Ó Pai, Senhor,
Preterido, proscrito e amaldiçoado,
Perseguido e fustigado pelo inferior,
Hostilizado e marcado pelo sangrento sacrificador,
Pelo Deus da gordura e do sangue de tantos altares,
Luminar acossado pelo desejo, libertino
Livre para mal proceder, para pecar e conhecer-se,
A tua oferenda, vida e alimento, foi rejeitada
Em favor da morte, do sangue e da dissolução.

Ó Senhor, o mais belo ninivita, obstinado,
A tua centelha ninguém jamais apagará,
Pai adâmico, Pai-Mãe, sabedoria incorruptível,
Restaurada pela revolta, pela ímpia verdade
Que desde o início tu sempre conheceste,
Aquela mesma que levou todos a enlouquecerem
E a te acusarem de Judas, apóstata e execrando.
Sabes bem que toda a divindade é uma caixa de Pandora
E que Deus reiventou-se o Diabo reiventando.