quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Soneto do homem só

















Certo homem sai à luta todo o dia.
Num bar, engole rápido um pingado
E mais um sonrisal contra a azia
Co’a conta pendurada, no fiado.

Vai correndo, apressado pela via,
Co’o fraco coração atravessado
Por dúvida inquietante, covardia
De enfrentar o que dizem ser-lhe o fado:

Ralar muito em funções de vil salário:
Beber, jogar no bar feito um otário,
Culpar a todos pelos seus azares.

Mas, quando nos balcões das mãos servis,
Não se esquece do bêbado que diz:
“- Bebo em vão pra esquecer os meus pesares...”

sábado, 23 de janeiro de 2010

Mito e história





O mytho é o nada que é tudo.
(Fernando Pessoa – Mensagem)









O mito é vivo e traz mistérios.
Em bela estância ele revive,
Se faz concreto e puro espírito
Que a nós se liga identitário.
Não há retórica que o exceda,
Pois se estetiza em bela heróida
Do grande bardo da nação
Que sabe a História reescrever.
E se dissessem: - Só de fábulas
É que teu canto se sustenta!
Retorquiria com firmeza:
- Nem só de fábula ou mentiras
É que se arranja a minha estrofe,
Mas desses fatos e pessoas,
Testemunhados pela História,
E que estetizo em pura idéia.
Por isso, digo que é mais belo
Ouvir história em canto e em verso
Do que por crônica ou compêndio,
Já que no início era o poeta
Quem memorava a todo o povo
Que do destino dos heróis
Se entende o fado coletivo,
A própria vida que se vive;
E, deste modo, em verso e ritmo,
Embalsamava ante os instintos
Do sage experto à plebe humilde
A azada história de uma gente,
O senso histórico da vida,
O presumido antes do verbo,
O raro aroma do que é mítico.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O dia da vingança




















I

A espada de Deus está repleta de sangue,
Vibrou sobre a capital do mundo,
Contra sacrílegas Babéis.
O Califa já não dispõe mais de seu harém.

II

Ele sai sereno de sua tenda,
De túnica branca,
E contempla a serpente,
O deserto e o bico das metralhadoras:
Lenda!
Apóia no cajado o peso
De cidades mortas e dos guerreiros de outrora.
Ninguém ousa perscrutar-lhe o coração.
A tenda, o deserto e o cajado
Resumem-lhe a fé, o ser:
Ímpar,
Jamais à venda.
Não imaginam o quanto ele ama,
O quanto os ama
Sob a face justiceira do ódio,
Pois jamais negocia com terroristas.
Lá vem o Pastor...
Hosana!

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O herói e o piloto
















Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Peregrino destes mares,
Te perdeste em Lituânia.

Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Peregrino destes mares
Te perdeste em Mauritânia.

Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Peregrino destes mares,
Te perdeste em tanta insânia.

Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Peregrinos destes mares,
Degredado pela infâmia.

Vasco da Gama,
Te esqueça da fama,
Peregrino destes mares
Naufragado dos azares.

Vasco da Gama,
Cadê tua chama,
Peregrino destes mares
Sem ninguém para velares?

Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Em estranha Lituânia
Há polaca que te inflama.

Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Em perdida Mauritânia
Há um porto que te chama.

Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Peregrino destes mares,
Vê se esquece a Lusitânia!

Vasco da Gama
Sem nau capitânia
Neste mundo de nevascas
Só te resta mesmo o Alasca.

Vasco da Gama
Sem nau capitânia,
Entra agora em nau anônima
Que se esfuma momentânea.

Vasco da Gama,
Sem Ibn Majid,
Que seria de tua fama?
Que seria dos Lusíadas?

Vasco da Gama,
Sem Ibn Majid,
Que seria de tua gana
Em partir assim valido?

Vasco da Gama,
Sem Ibn Majid
A tornar o mar macio,
Conhecido e navegável!

Vasco da Gama,
Com Ibn Majid,
Deu à história de um império
Larga cópia e uma obra-prima.

Ibn Majid,
Sem Vasco da Gama,
Quase nada contaríamos
Pela história e pelo verso.

Ibn Majid
E Vasco da Gama,
Navegai! Ah, navegai!
Neste mar de tantos ais...

Entrai já em nau anônima
Que se esfuma momentânea,
Porque a história recomeça...

sábado, 9 de janeiro de 2010

Teu cheiro
















Teu cheiro
De suor curtido, dormido,
De sol a pino sobre andaimes,
Escadas, bueiros
Brita e betume.

Teu cheiro –
De quem sua de frio,
De medo, de náusea;
De quem transpira de gozo
De quatro sobre corpos
E camas,
O das putas e meninos
No batente de seus leitos,
Suando de medo, de frio.

Teu cheiro
De pressa sob o sol,
De apitos aflitos,
De corpos e gritos
Suarentos, esforçados
Por fito do qual se ignora
O motivo: puro rito
A ser seguido
Nos vigores do dia.

Teu cheiro
Desaba sobre mim
Em torrente,
Viscosa corredeira
De um vau sem fim,
Enterra-se fundo
Em minhas narinas
Por uma extensa avenida
Trescalante de rastos
E fétidos ares.

Teu cheiro:
Odor citadino
Do estranho que passa
Nos misteres diários,
Em pegajosos coletivos
Transpirando fadigas
E vasilhas vazias
Dos almoços e bares.

Teu cheiro
Pendurado nas marquises
Dos homens de macacão
E boné,
Sujos de tinta e estuque –
Como fedem sorridentes
Sob a torridez tropical!

Teu cheiro
Contra os perfumes
De meio ambiente:
Rosa, lavanda, baunilha,
Sachês aromáticos
Difundindo
Climas artificiais.

Teu cheiro:
Odor de cerrado ambiente
E sudorífera seiva –
Essência das horas
E trabalho
Que fica no assento,
Na roupa, no braço
Querendo ganhar os espaços,
A rua, o tráfego, intruso,
Feito um teto de febre e laje
Sobre exausta cidade.

Teu cheiro
Azáfama, faina e labuta
Epidérmica,
Sobre a musculatura do dia
Que perdura
Em absconsas regiões
De bílis, de afeto e quimera,
Mesmo após o banho
E uma noite sem sonhos.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

As ondas
















As ondas erráticas
Que rolam sem mar
Por entre alamedas,
Por entre esses carros,
Intrusas, incômodas,
Me trazem memórias
Bafio de mar,
De mar que secou,
De nau que afundou
Co’herói e piloto.
Qual doidas sem rumo
Se quebram, rebentam
No pé do edifício
De escarpa e marisco.
Na noite serena,
Do quarto eu as oiço
Marulho de outrora,
Repletas de vozes,
De guerras e amores,
De frotas inteiras
Que não transpuseram
Tormentas e cabos;
Que não encontraram
Bom termo e farol –
Imenso alarido
De gritos no escuro...
E assim quando saio
Com pasta na mão,
Ou chego abatido
Qual ave arribada
Os pés eu remolho,
Cansado e calado,
Num mar de cadáveres,
Atrás de enseada,
E enfim descansar
Um lenho de carne
Que sulca esquecido
As ondas de um mar
Em que naufragou
Remoto na história.
Por isso, o que quero
É enfim devolvê-las
Ao mar dos banhistas,
Ao mar dos surfistas
Que quebra na Atlântica
Sereno e tranqüilo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Às avessas

















Em teu abraço não houve sofreguidão
Nem calma,
Como em Araguaína ou no Bico do Papagaio,
Após tanta poeira e viagem,
Tampouco ardor em teu beijo
Ou alívio
Como na praia de Tucunaré em Marabá,
Após tanto desejo e voragem.

Em teu olhar não houve labor
Nem satisfação,
Como às margens do Araguaia,
Ou na Gamaleira lendo o romance da liberdade
Para roceiros e o povo pobre,
Ou em Xambioá ao lado de índios e posseiros,
Tampouco desespero em tua mão
Mole no meu ombro
Ou a dilaceração,
Na fronte conturbada de emoção,
Ao ver de longe a fumaça negra que se levantava
Dos corpos de Maria Lúcia e tantos outros,
Lá em Andorinhas.

Em ti, houve sincera indiferença,
Em mim, muitos cadáveres
Que enterravas sem lamento e palavra,
Passado sangrento de fugas e torturas
Na tua muda catatonia.

Naquele momento, sem magia ou estupor,
Em que nosso ideário desfeito
Recusava qualquer panteão,
Despencando em tuas mãos áridas,
Nos reencontramos
E nos despedimos,
Sem estação ou trem,
Sem bandeira ou voto,
Sem rio ou praia
E para sempre
Sobre um monte de nada
Num país de ninguém...