quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Par

Duas vidas tão diferentes,
Perfeitas em solidão de astro,
Conjugando-se, agora, em rota irregular
De meteorito errante, sem destino.
Essas vidas embevecidas
No laço breve dos dias e noites,
E és noite, madrugadas
De lua ensolarada,
Iluminando-te o rosto lhano
Sem sonho ou mistério,
Sem quimera ou segredo.
Em tua vida,
Todos têm pele, sabor, carícias,
O sonho insonhado, antes vivido,
Quimera transida de medo e desejo,
Segredo rasgado por leitos e veios
Ideal feito
De seio e regaço,
De promessa e abraço
Qual árvore de pomos pendidos,
Quase todos colhidos,
Iguarias comuns de raro quotidiano.
Quão diferentes nossas vidas!
Ainda assim se uniram,
Encararam-se e, após o fascínio,
Sobreveio o estranhamento.
Uma que é pura invento,
Teoria sem experimento,
Invenção jamais provada
Pelo vento, pelo mar e os homens,
Conservada como relíquia, dor
No fundo de gavetas esquecidas.
E a tua: (invejo-a!)
A vida sem reticências,
A interrogar vetustas exclamações.
Texto bem acabado,
Muitas vezes revisto,
Escrito na tênue folha marinha das águas.
Tua vida: queimadura, cicatriz,
Gozo e generosidade.
Belo 14 Bis, Zepelin,
Mais uma vez,
Alçando-se aos ares.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Poema

Durante horas de silêncio e sono,
De leitura e angústia,
Ante o cânone, ante incompreensível estro,
Ante confuso mundo, de tão claros enigmas,
Eu não sabia,
Mas o poema sempre esteve ali,
Qual ferida ou queixume,
Qual fruto ou negrume.
Deu o tempo e a técnica se fez no sofrimento:
- Fiat! disse algo dentro de mim
E, entre o fulgor e a escuridão, tímido, na penumbra,
Entre utopias deglutidas,
Poentas brochuras
E defuntas armas e canções
Contra os donos da ordem e do tempo,
Algo fundo revelou-se,
Fosso, abismo,
Exasperado grito
Ou simples pomo pendido.
Deu a hora e me precipitei,
Colhi o poema,
Trinquei os dentes nele
E o apreciei deveras,
Vociferado, em profundo negror
Com a boca esfaimada do mundo.
Senti sumo acre,
Sabor amaro,
Iniludível
E abismal.
Gostei
E não senti qualquer contentamento!
Hoje, ofereço-o,
Oceano ou ruína,
Fruto
Ou salto no abismo,
A quem quiser
Algo diferente do ópio, da fuga, da nuvem
E do frenesi diário e intenso,
Para sempre infenso
Às águas que afluem da memória.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Verbo

Na estiva das palavras,
Altercas, xingas, suas,
Imprecas contra o mundo,
Te tentas traduzir.

Na estiva das palavras,
Labor sempre penoso,
Tu queres existir,
Monumentalizar-te.

Na estiva das palavras,
Tu queres transgredir,
Sacar das mãos anéis,
Os signos mutantes.

Na estiva das palavras,
Tu sangras e respiras
Retórica e sofismas
De luta interminável.

Na estiva das palavras,
Gritaste: “- Crucifica-o!”
Também martirizado
Na ambígua cruz da história.

Na estiva das palavras,
Sem dúvida verteste
Sentenças incontáveis,
Doutrinas e linguagem,

Loquazes paladinos,
Astutos e prolixos,
Que sabem como o gárgula
Usar bem a garganta,

Lançar verboso líquido
A tantos corações
Logrados no artifício
Das fábulas e máximas.

Na estiva das palavras,
Disputas e recreios,
Embate de discursos,
Nas sendas do ideário,

Travaste arrebatado,
Filósofo ou poeta,
Retórico ou sofista,
Em dúvida inquietante

Pensando respondê-la
Com séria metafísica,
Com fé e ideologia
Em busca de ti mesmo,

Do mundo que circunda
Teu frágil coração
Com vasto palavrório
De púlpito e sermões;

De tudo que te aflige,
A própria realidade
Que buscas na linguagem -
Perfeita relação,

Total homologia
Da imagem co’o real,
Da coisa co’a palavra,
Idéias e juízos

Que fazem de ti mesmo
Homílias e quimeras,
Mentida ficção
De que és um novo Adão.

E agora: que fazer?
Ser dono das certezas
É coisa de descrer!
Tu jogas co’infinito...

Na estiva das palavras,
Aspiras ao eterno,
Restando só de nítido
Um ritmo e sentido

Cativos de si mesmos,
Embora sempre queiram,
Suando gente alheia,
Enfim tornar-se livres,

De si até ser livres,
Do que não nos cativa,
Do que mantém cativo,
Do que não grita vivo

No dorso do argumento,
No braço da palavra,
Na luta do operário,
Na estiva do poeta.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Pombas

No dia fraturado,
Ainda me comovo.
Pra mim não há melhor
Imagem que me evoque
A dor de ser aqui
Que a de contusa pomba
Que tenta em vão voar,
Do chão segura alçar-se.
Sou esta pomba feia,
Que manca pisa o dia,
Em crimes repartidos,
Ferindo todo o alheio,
Ferindo toda gente,
Que não se entende e vê
Que como aquela pomba,
De um ego desmedido,
Mas sempre ignorado,
Também corre perigo,
Mancando o tempo todo,
Enquanto sente a vida
Tão débil levantar-se,
Mas já ferida e breve
Num vôo incerto e frágil –
Sois ave de má sina!
Fazer o quê? E agora?
Pergunta-me o silêncio,
Em meio ao alarido
De quem se acha feliz,
Sem ver que também manca
Por baixo dos casacos,
De capas e aparências
Expostas nas vitrines
Das lojas e balcões
Que cremes e cosméticos
Of’recem nos reclamos
A eterna juventude,
Com código de barras,
A dóceis avezinhas.
Não há respostas certas!
Somente mais perguntas
Que são sempre caladas,
Mas se materializam
No jovem que me assalta
Das vielas da miséria,
Na pomba que não voa
E cata estas migalhas
Ao rés de um chão mesquinho,
Sem ver que se aproxima
Um carro a esmagá-la.
Enfim, as suas penas,
Depois da imensa roda
Que passa impiedosa
Por sobre frágil corpo,
A mim comoverão
Num dia fraturado
Que conta para todos
A pena que por muitos
Eu sinto agora, aqui
Em meio às minhas penas –
Fantasmas de mim mesmo.