segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Cântico II


Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Esta árvore?
Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Este pássaro?
Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Esta montanha?
Quantas vezes
As marés já
Me raptaram e devolveram
Este mar?
Quantas vezes
Já morreu e nasceu
Este corpo?
Olho agora
Eternecido
Para meu último renascer,
Para o meu mais recente parecer.
Filho,
Devo dizer-te:
Já fui,
Já fomos
O trilo
Do pássaro,
O grilo
Que tem no bico,
Já fui,
Já fomos
O seu pipilo
Ao nascer,
O pistilo
Da flor
Antes de morrer,
O silêncio
E o sigilo destas serras,
O céu
Quando me rutilo
Em nuvem, em sol
Em mar.
Porque ontem,
Hoje, amanhã
Fui homem,
Pássaro, mar,
Esta manhã
Que, em breve,
Morrerá,
O Cáspio
Ou Egeu
Nos refolhos do eu.
Já estive roto,
Todo sujo
E magnificamente
Pintado
Num vaso etrusco,
Já estive
No esgoto
E no luxo,
Mas sempre cerúleo
No âmago de tudo,
Porque a consciência
Mesmo ciente,
Se perde,
Esvanece,
Mas a matéria
Permanece,
Se atreve
Contra o momento,
É o próprio manto
Espaço-tempo,
O início,
O Quantum.
Porque ontem,
Mais uma vez
Vi a flor e a tez
Que fui, que fomos
No féretro,
No moribundo
Ou na prenhez
Do mundo,
Vi como fui,
Como um dia apareci
Antes de assim parecer,
Mais uma vez,
Antes do que sou,
Deste corpo
Esvanecer-se
Ao morrermos.
Vi que a memória
Da matéria
É a inércia
Desses montes,
Algo que jamais esquece
E guarda-se sempre
Do discurso, da prece
Ou da quimera
De quem se desespera
E se nega
Para nos impingir
Uma única vida
Eterna,
Enquanto somos tantas
Que perecem.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Vagina dentada


Vagina dentada,
Escancarada
A qualquer fluxo,
Caudal anônimo
De caras e de pênis,
Exibição e charme,
Feito artigo de vitrines,
Mas no fim: solidão,
Camada de carne,
De lábio e asfalto,
Elevando tapume alto
E muros feitos
De cimento e de murros.

A que horas deitar?
A que horas amar?
Mas sempre trabalhar,
Devorados, seta ferina
Na carne encilhada,
Inflamada ferida –
Grito, dorida anti-voz,
Abafada, contra o rito,
Pelo mito,
Pênis mordido
Por dentada vagina.

Boca sifilítica
A excretar purulenta
Pruridos, gonorréias,
Pequenas mortes
Paralíticas,
Virulentas panacéias
Contra o membro
Rígido, ereto
Em busca de afeto
Num paraíso perdido -
Teatro obsceno
De deleite e venenos.

Amor ou tesão?
Apenas fluxo!
Chafariz de repuxos
De pressa e de ódio.
Pergunta-se: - “O que fiz?”
Mas estica sempre a cerviz
Sob a camada dura
De raiva e de murros –
Ferida aberta,
Sem atadura –
Enquanto goza e mente
Semente amputada
Na vagina dentada.

sábado, 14 de julho de 2012

Cântico


Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Não inspira,
Não me importo.
Vivo assim:
Dentre tantas mentiras,
Escolho uma ou duas
Que, ao menos,
Façam sentido pra mim.
Por isso, amigos,
Se quiserem,
Me acusem de poeta cínico
Ou de ter partido
As asas do querubim.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
É mentira!
Não me importo.
Em verdade tudo transformo
Ao som da lira,
Porque gosto
De verdades mentidas
E gozo
Ao ver aqueles
Que ainda crêem
Em coisas absolutas
Na vida.

Malgrado digam:
Tu és louco!
Teu canto
É nada ou pouco,
Não me importo.
Torno-me os versos
O meu reverso
E os ofereço a todos
Sem esperar nada,
Nenhum troco
Ou que percebam
O próprio engodo.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Está morto
Ou morrendo está,
Com isso me rejubilo,
Por saber
Que componho um hino
A todos fraterno,
Que nos deixa isentos
E desnudos do fardo
De sermos eternos.

Malgrado digam:
Vives da rapina
Do dia-a-dia,
Transformas a poesia
Na nossa ruína,
Não me abato;
Escrever só nos lancina
E nos inocula
Com o mundo
E a estricnina.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Faz-me sentir
Num exílio,
Não há encanto,
Nada de sublime
No teu canto,
Não me espanto.
Não há como atingi-los
Sem antes
Cometer-se um crime,
Expor numa vitrine
Tudo o que nos reprime
Para a quebrarmos
Beligerantes.

Malgrado digam:
Só amas o chão,
O parco instante,
Não me importo.
A terra, o céu,
O sol radiante,
O corpo vão,
Tudo o que vês
Perecerá
Nesta láctea via
De fluidez.

Malgrado digam:
Tudo o que cantas
Te vai mandar
Para o inferno,
Não me importo.
Sei que nada é fixo
Ou sempiterno
E que, como todos
Que se persignam
Com crucifixos
Ou que não crêem
Na parasceve,
Em breve,
Me tornarei pó, lodo,
Enquanto cantam
Os rapsodos.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Paideia

Buscar-me nas doutrinas renegadas,
Infensas a argumentos que somente
Defraudam quem só pensa diferente
Das lápides por muitos confessadas;

Querer-me libertado das julgadas
Verdades que sustentam o Ocidente
Inteiro, como um fardo, a fazer frente
Às formas tantas vezes rejeitadas,

É o modo de encontrar a alteridade,
Um outro que de mim resta proscrito,
Anátema, revel, um ser maldito,

Despido de qualquer moralidade
Que só condena todos, sem medida,
Ao logro que encarquilha a nossa vida.

sábado, 2 de junho de 2012

Sina


Se há algo
Que me ensina
É que tudo
Nesta vida
Sempre cisma.

Se há algo
Que me ensina
É que tudo
O que cisma
É por sina

E que a sina
De cismar
Faz a vida
Pressupor
Para si

Um sentido,
Um propósito
E destino
Presumidos
Para todos.

Mas se tem
Um sentido,
Por que cisma
Esta vida
Tão sentida?

Mas se tem
Um destino
Por que cisma
E se abisma
Esta vida?

Se ela cisma
É por sina
De não ter
Um sentido,
Um juízo,

Por saber-se
Sem propósito
E destino
Quando cisma
Em surdina.

Por saber
Que cismar
É buscar-se
Bem acima
Dos sofismas

De um destino,
De um sentido
Tão mentido
E fingido
Pelas gentes.

Pois se cisma
Malsinada
E repleta
De sentidos
Presumidos

Nos ensina,
Na verdade,
Que viver
Esta vida
É a sina

De perder-se
Em cismar,
Em amar
E a arriscar-se
Sem sentido.

sábado, 28 de abril de 2012

Velho tema

Ao meu filho


Não sei se seguro
Areia ou figura.
Não sei se teus braços
Terei sempre assim:
Abertos, erguidos
Pedindo-me um abraço.
Não sei até quando
Terás no teu rosto
A frágil candura
Que o tempo desnuda,
Arranca e fratura.
Tormentas se formam
E agravam meu medo
De cedo perder-te,
De ver-te tragado
Por frio lajedo,
De ver-te levado
De mim, indefeso,
Tão súbito e quedo.
E embora te veja
Brincando e saltando
As ondas e a espuma
Que beijam teus pés,
Eu sinto, aziago,
As noite e brumas
Que logo virão,
Eu sinto pressagos
Os corpos de agora,
Que logo teremos
O mesmo destino
Das vidas de outrora.
Por isso não sei
Se areia ou figura
Seguro não mãos,
Por quais desventuras
Enfim passarei,
Por quantos extremos
Nós dois passaremos,
Se a paz do teu riso
Com que me jubilo
Será sempre um hino
Tangendo meus dias.
Por isso não sei
Se todo o meu zelo
Não passa de apelo
Que não vai deter
Teus louros cabelos,
O rosto e a figura
Da vã carnadura
Dos nossos momentos.
És folhas ao vento!
A imagem no espelho
Na qual deixarei
Meu lábio, meu beijo,
O fundo desejo
De em mim te reter,
Teimando suster,
Quimera, loucura,
A areia e a figura
Que eu hoje seguro.

sábado, 7 de abril de 2012

De volta para casa

I

Bocas desmaiadas,
De sono escancaradas,
Viajam de volta para casa
Avenida afora,

Enquanto
Cabeças pendidas,
Em sonolência contrita,
Dormem o sono dos justos,

Nessa hora
Que se prolonga
E devora
O resto do dia
E das horas.

II

Vogam,
Em meio a lixos
E detritos,
Antigos destroços
De outrora;

De viagens,
Tratados, ilhas
E tordesilhas,
De tantas linhas,
Faixas, buzinas e sirenes
Dos que voltam para casa
Infrenes e sem leme.

Vogam
Tiros,
Gritos e vozes
Em meio ao martírio
De quem morre anônimo
Sem nunca ter lutado
Contra mouros ou assírios.

Vogam
Santas cruzes
E arcabuzes
A perpetrarem
O vilipêndio
De missas
Estandartes,
E incêndios,
Dos massacres
Que catalogam
A cidade.

III

Tudo que é perene
É só mais uma forma
Do provisório
Neste empório
Que é a história.

Por isto este mar,
Há muito seco,
Embora infindo,
Que guarda seus ecos
E os endereços
Marítimos ou citadinos
De tantos vascos,
Marcos, pólos e gamas,
Zhengs, vicentes,
Pessanhas, janszs,
Mendonças, lischontens,
Nunes, nunos e homens,
Sem glória e sucesso
Que voltam para casa
De mares, bares e azares.

Por isto este mar,
De quem
Não conseguiu regressar
E que hoje,
Sem canto ou narrativa,
Retorna para casa,
À deriva,
Em meio a vagas
Que aportam,
Em chamas,
As frotas soçobradas,

Lâmina
Que aflige e inflige
A chaga escusa,
Ibero-americana,
De toda uma raça chacinada,

Os becos e logradouros
De ocaso,
Esquecimento e atraso
Que não encontram
Escoadouro.


Poema modificado após ler o belíssimo "Um dia quebrarei alguns ventos do norte".