domingo, 27 de junho de 2010

Escravo




















A Antônio Franco Alexandre


Escravo escrevo
De tudo
Ou
De quase tudo,

De becos e tiros
De ruas e fuzis,
De largas avenidas,
Livros e vitrines,
De alvoradas e crepúsculos,
De estrelas e amplidões,
De luas e bondes,
De portos e naus
Que apontam
Magoados
No horizonte
De concreto e fastio.

Na escrita,
Nem tudo é livre
Como na fala
Que livre
Perde-se longe,
Prolixa,
Com suas pontes
Frágeis, feéricas,
Pois a da escrita
É fixa
De madeira
E prego,
Embora levadiça.

Escravo escrevo
Da escrita,
Da vida
Que o corpo mancha
E o levita
No espaço
Sintático do ser.

A palavra amiga
Súbito
Assume brusca
Estranheza
Na sintaxe
Quase estrangeira;
Quer agora
Ser ferida de beleza.

Escravo escrevo
Da escrita,
Livre de tudo
Ou
De quase tudo,

Do que não é
Obtuso, escuso,
Sujo, da límpida
Retórica de tribuna,
Escravo do que aéreo
Se espatifa
No chão úmido,
Túmido
De súbito sangue.

Na escrita,
Nada é escravo
Do corpo livre da fala.
Escrita
Que tantas vezes
Cala,
Porque nela
Não há altercação,
Interlocução,
Copiosos gritos,
Mas leitura,
Grave tessitura
E leitores
Reclusos
No silêncio.

Na escrita
Nem tudo fala,
Mas deixa
Lido,
Movediço
Na ante-sala
Da escritura –

Face marmórea
Do instável
Onde escravo
Escrevo inscrito.

Na fala
Quase nada escreve,
Inscreve-se,
Embora fóssil
Vire gramática,
Escrita escrava
Do corpo
Que foi fala.

Escravo escrevo
Proscrito da fala,
Inscrito na escrita
Em meio a tudo o que fala
E que escravo se inscreve.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Sumário dos dias II


















A lua ergueu-se nos espaços
E nada disse.
Foi-se como ontem, hoje,
Sem nenhum murmúrio.
Passou o vento bulindo em tudo,
Causando grave alvoroto,
Tentando soprar as lembranças contra nós,
Mas não lhe entendemos o recado
Após o dia, o verão e o estio.
Passou apenas nos deixando
Uma noite sem nenhum fragor,
Paixão ou volúpia,
Sem anjo a tocar trombeta –
Noite, apenas noite, física,
Insonhada por todos os poetas.

Ao alvorecer,
A manhã trouxe-nos
As mesmas flores de ontem e amanhã:
Desenganadas!
Porém, não houve pesar ou frustração
Pela noite, pelo vento e as flores
Fanadas entre nossos dedos resignatários,
Sem nenhuma poesia.

Pois, como dormimos, acordamos,
Como acordamos, comemos,
Como comemos, repomo-nos,
Pequeninos às nossas funções,
Como nos repomos, produzimos
Como produzimos, amamos,
Como amamos, esquecemos,
Como esquecemos, esquecemos o que esquecemos,
E, então, morremos como nascemos,
Brotando sobre nossos túmulos de granito e cimento
As mesmas flores do amanhã,
Entre armas e sonhos imobilizados.