sábado, 26 de novembro de 2011

Supernova

“Porque tu és pó e ao pó retornarás”
(Gn. 3:19)


A supernova
É flor de raios
Apavorando
Floricultores,
A tantos povos
A contemplarem
Imenso brilho,
Origem e fonte
De todo o riso,
Do todo o choro
E da pergunta
Sobre o que somos,
Para onde vamos.

A supernova
É nossa mãe
E nosso pai,
Deu causa a tudo,
Ao teu destino
E à nossa fé,
Gerou profana
Buracos negros
Insaciáveis
E até as unhas
Tão comezinhas
Do nosso pé.

A supernova
É geometria
A ejetar-nos
Um rubro espectro,
Etéreo aspecto,
A quintessência
De todo o cosmo.

A supernova
É substância,
Todo o minério
Do teu planeta,
O claro enigma
Do teu mistério.

A supernova
É ferro e cálcio
Carbono e boro,
Matéria orgânica
Do teu desterro
Em supersônica
Exsudação.

A supernova
É festa e luz,
Tão branca luz,
Tão fero brilho
È vida e morte
A explodir
No céu da China,
Em Cassiopéia
E na Serpente
Ao olho enorme
De Brahe e Kepler.

A supernova
De nada esquece
E a si requer
Matéria outrora
A ti emprestada.

A supernova
Está no fundo
Do altivo céu,
Além do véu
Do firmamento,
Na grande Nuvem
De Magalhães
Que se te espelha
Destino e halo.

A supernova
Não mente ou ri,
Te dá o dente,
Depois o toma,
É tua origem,
É tua esfinge
Espelho e berço
De todo o fim.

A supernova
É muito séria,
Térmico útero,
Fornalha cósmica
Colapsada,
A Sanduleak
Brilhando mais
Que a própria Vésper
A derramar-se
Por vasto céu.

A supernova
Encena os céus,
Condena os céus
Com raios gama
E raios-x,
Ponteia os astros
Do cientista
E do menino.

A supernova
Que tanto amas
Em ti reponta
E te reconta
A própria imagem,
O curso d’água
De toda a vida.

A supernova
É a inflação
De quente lóbulo
Que nos semeia
Novas estrelas,
A sementeira
Evanescente
Que te refaz
E degenera.

A supernova
Põe a serviço
Toda a matéria,
E novas nuvens
E nebulosas
Que te fecundam
E te inoculam
Veneno e pólen
Do céu longínquo.

A supernova,
O bronze e a pátina
De novas vidas
E novas Terras.

A supernova
Deu tempo ao homem
E o subtrai
Do solo ao cosmo.

A supernova
Te dá o câncer
E a rara chance
De redimir-te
Ignorado
E ignorando
O próprio acaso
De toda história.

A supernova,
A destrutiva
A destruir-se,
A destruir-me
E a construir-nos
Do pó sidéreo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Soneto a Judas

Amar o próprio Judas não é coisa
A quem não renuncia altar vetusto,
A tantas crenças vãs que a muito custo
Turvam o pensamento, frágil loisa.

Amá-Lo contra todos os discursos
É ter a mente sã do criminoso
É sentir afinal o imenso gozo
De trair o que trai nossos excursos;

Ter na boca malditos padre-nossos:
“Ó Senhor, vinde Vós a nosso Reino
Reduzir as doutrinas a destroços;

Revelai as agruras do desejo,
Todo o mal desta vida na qual treino
Beijar os meus irmãos com vosso beijo.”

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Amar o Diabo

Amar o Diabo
É como amar o próprio Judas
O mais elevado,
Aquele a quem tentaram
Macular-lhe o brilho,
Denegrir encolerizados
O preferido do único Filho.

Amar o Diabo
É como amar o Evangelho,
A sublime canção,
Boas Novas
De que ninguém precisa de salvação.

Amar o Diabo
É desprezar os doze
Como se nada fossem,
É amar o décimo terceiro,
Ter a carne imolada
No templo de sacerdotes e carniceiros.

Amar o Diabo
É como amar
A geração de Adamás
E seus luminares,
Aquela que tentaram sacrificar
Nos altares
Dos que jejuam e se abstêm
Gritando aleluia e amém.

Amar o Diabo
É ouvir a voz de Satanás
Sussurrar-nos assaz
Que nosso chão,
Que nosso pão e além
Não é uma caixa
Onde se acha
Todo o mal ou todo o bem.

Amar o Diabo
É ter Judas Iscariotes
Como confessor e sacerdote,
Ser facho ou archote,
Apóstata,
Alvo dos apóstolos,
Malditos zelotes.

Amar o Diabo
É não ser gado,
Estar imundo e sem pecado,
Trazido ao mundo,
Da perdição das estrelas
E poder vê-las
Como antiga cela
Onde lhe devoravam
O fígado e as costelas.

Amar o Diabo
É ver o próprio Deus
Despir-se de todas as vestes
É vê-lo nu, sem desejos,
Monstro do Leste,
A contemplar no espelho,
Sem chifre ou rabo,
Toda a pureza do Diabo.

Amar o Diabo
É tornar-se pio crente,
Ter nas mãos a estrela e a serpente,
A ira acesa,
A marca e o chifre
De quem quer ser livre
E, enfim, se desnuda
Para crer
No evangelho de Judas.

sábado, 20 de agosto de 2011

Afrodite

Teu corpo de Afrodite incidental,
Nascido entre os escombros do meu dia,
Me surge enquanto dispo-me da cal
Das horas consumidas sem valia.

Teu corpo, epifania conjugal,
Sigilo e afago após a bizarria
Que me aflige tornando mais brutal
A mão que à noite busca-te erradia.

Refúgio de quem vive em meio às feras
De todos os banidos das esferas,
Dos anjos, prometeus e satanás

Que agora gozam, amam e trabalham
Na luta pelo pouco que amealham,
Afã com que teu corpo se compraz.

sábado, 11 de junho de 2011

É preciso amar o diabo

É preciso amar o diabo,
Touro e carneiro sobre nossas carnes,
Aranha, desejo
Sobre as horas vazias.

É preciso amar o diabo,
Mosca a rodear
As nossas pestilências,
Mão que flagela e alicia.

É preciso amar o diabo,
Abutre a estraçalhar-nos,
Negror a nos subornar
Com um saco de moedas.

É preciso amar o diabo,
Moabita a nos aguilhoar
Desde Fegor, língua e falo
A nos violar com labaredas.

É preciso amar o diabo,
Boca, bacilo, a nos morder
Com milhões de dentes,
Líbia a nos tornar o seu vassalo.

É preciso amar o diabo,
Goela a nos beber concupiscente,
Monstro do Oriente, tentáculos
E ventre a excitar-nos os mamilos.

É preciso amar o diabo,
Satã, Baal, Lúcifer e Asmodeu,
Luz que o próprio Deus
Quer nos roubar...

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Novas litanias a Satã

Ó tu terrível pai dos desgraçados,
Deus de todos que vagam derrotados,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Pai que por ser tão pródigo e ubíquo,
Fez do homem tanto santo quanto iníquo,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Primordial senhor de todo o andrógino
Que hoje afliges o devasso e o misógino,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Ó fé sem nenhum culto ou liturgia,
Inspiraste a mais negra litania,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Ó tóten ignoto da memória,
Cúmplice do ladrão, de toda escória,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Deus de quem elabora, vil, as farsas
E em transe bebe o sangue dos comparsas,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Pai do que afoga as mágoas na cachaça
E vive um dia-a-dia de desgraça,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Quem põe a quase todos de joelho
Diante de sinistro escaravelho,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Aquele que nos leva, em ânsia e febre,
A tudo dissipar num lance breve,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Ó tu, Pai da cobiça que me aferra
E nos conduz à luta, à inveja e à guerra,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Cão feroz que devora nossa entranha,
Mercador que co’a vida faz barganha,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Pai daqueles que clamam por Jesus,
Mas somente ao inferno fazem jus,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Senhor de quem se assola no cigarro
E ao mundo só oferece o seu escarro,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Sugeres o poeta e até o asceta
E imprimes tua marca à toda meta,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Terror que nos enreda em fortes súcubos,
Paixão que nos persegue até o túmulo,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Moral que leva mesmo os mais notáveis
À fome e à desmesura incontroláveis,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Tu cuja mão engendra os artifícios
De vidas que se perdem entre edifícios,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Deus do acaso, incidente eventual,
Jantas conosco, cúpido e letal,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Tu que tudo vês, nossa atroz miséria,
Malgrado vida pródiga e venérea,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Caído como tu do firmamento,
Fui expulso também do pensamento,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Satã, ouve, portanto, esta oração,
Com que cubro meu corpo em ablução,

(Tem pena, Satã, desta carne deletéria)

Que aqui devoto a ti, toda a semana,
Pai e razão da enorme angústia humana,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

Origem do que chamam ser humano,
Tudo que torna nosso mundo insano,

Tem pena, Satã, desta carne deletéria.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Párias

Acendes a fogueira
Que não é a bem faceira
De roda e de brincar,
De festa e São João
Mas gélida de agosto,
De ser todo em desgosto
Acesa pra espantar
Baratas e friagem,
Sob hirta e fria laje,
Sob hirta e fria noite
Escassa, de estiagem.
Tão fria que arrepio
Provoca qual açoite
De látego no corpo
Baldio, correntio,
Na trágica orfandade
Dos párias da cidade,
Escravos sem senzala.
Entanto tal fogueira
Dos sem eira nem beira,
De restos que tu catas
De esquinas e lixeiras,
Dissipa chama rala
Que pouca força tem
Ao frio secular
Que vem de tropical
Cidade americana
Enfim subjugar,
Enfim de ti afastar
Os ratos que também
Te correm pelos pés.
Contigo todos comem
Semelhos a novo homem
Que rói a velha lápide
Decrépita e ancestral
Que afunda em lamaçal.
E sob rija laje,
Concreto cru de ultraje,
Se esfria até a vontade
Da pobre mão pedinte,
De ser tornado helminte,
Esmolas suplicar –
Terrível condição,
Gravosa de aleijão,
Que além desta matéria
Te inflige a vil miséria.
Dormir é o que tu queres,
Dormir para esqueceres
A frágil noite e seres
Que habitam estes pântanos
De sapos e elefantes
Comendo a cria infante
Com molho de alcaparras
Em meio a loucas farras,
Enquanto tu escarras
Um rio intolerante
Aos pés de nossas casas.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Natureza

Chupa-me
Com boca, língua e lábios tantalescos.
Chupa
Teu picolé fresco,
E baba e ama e sua
Minha genitalha
Sob o sol tórrido,
Sob um céu hórrido
De recalcada vindita,
Na praia do mar
Que conspira em silêncio,
Embora marulhoso,
Confrontando-se com a pedra
Em rancorosa desdita.
Num carro que a areia
Planeja engolir
Semovente, sorrateira
Tanto o herói quanto a sereia –
Orla que devora tudo,
O pulso, o músculo,
Auroras e crepúsculos
Litoral irascível,
Sequioso,
Como tu,
Ó boca, bacante
Abocanhando-me,
Despindo-nos de tudo
De qualquer linho ou veludo,
Todo o tecido
Esgarçado, franzido
No jeans da tua levi’s
Nesta hora indefenível,
Enquanto, além,
A floresta fumegante,
Brasil, braseiro,
Ampla terra de ninguém,
Arde
Na pélvis
Das meninas durante
As tardes e noites,
Noite adentro
Em boites,
Prostíbulos,
Turíbulo
Com que incensamos o dia
E a atmosfera
Que nos desce e se espalha
Das carvoarias,
Grossa, fornalha,
Feito hera
Sobre nossas casas
E as gaiolas dos gaturamos
Enquanto gozamos...

sábado, 2 de abril de 2011

Assomo de raiva,
Cansado de tráfego,
Na lívida alcova,
Após o trabalho,
Tu queres prazer.
Amor tu desejas,
Amor, entretanto,
Tu queres sentir
Vibrando no corpo.
Que corpo, que amor
Se todo o fervor
Gastaste nas ruas,
Real sacrifício
De um corpo arruinado
No estuo do sangue?
Tesão vem de pílulas,
Amor das revistas.
Consome, criança,
Porção que te cabe.
Não sofras, não ames,
Encenas tão bem
Tesão e teus casos,
Amor infinito:
Teatro do ser.
Cartório haverá
Que te restitua
O eterno desejo
De amar para sempre –
Clangor corporal.
Por isso não chores
(De fato, não choras!)
A raiva de agora,
Teu pênis caído
É mero detalhe
De amor velho e gasto,
De um corpo abatido
Do dia e semana.
Agora, porém,
Chegou teu remanso:
O fim-de-semana
No rádio a canção
Renova teu ânimo
Seduz com promessas
De um sábado à noite
Repleto de amor.
A vida é a arte
Do encontro já diz
Ditado da moda.
Então, sai à luta,
Criança inconstante.
Nas ruas e bares
Conversas e danças,
Teu copo de uísque
Com outros tilinta,
Pois ébrio de amor
Almejas estar
Nas ilhas de amores,
Ainda que dure
O parco momento
Do orgasmo comprado.
E à noite sozinho,
Depois do motel,
Transido de frio,
Calado em perguntas,
Tu lanças um grito
E escutas somente
Silêncio e sigilo
Dos corpos alheios
Entre ecos profundos.

sábado, 26 de março de 2011

Herança

Por que chorais
Mar seco ausente,
Sem úmido elemento?
Por que chorais
Como se quisésseis
Com vossas lágrimas
De marítima saudade
Restituir-lhe vigor e força?
Por que protestais
Se não podeis
Arrancar-vos as pernas e os braços,
Se há vice-reis
Por onde vão tantos passos?
Se seguis tão escasso,
Perdido e sem grei?
Vede bem:
A cidade já foi inundada
(E acho que sempre esteve)
E da enxurrada,
Após fevereiro e março,
Após Cabral e Gama,
Restou um simples sargaço,
O sapato roto, sem cadarço –
Nau sem amarras,
Em vossos pés encalhada,
Carcaça de beira de estrada.
Quem sabe uma escama,
Algo que vos proclama
Brasileiro?
Rio de Janeiro?
Sem paradeiro?
Desterrado panorama
Que vos amalgama
A camas e mucamas...
Restou a avenida Beira-mar,
O Forte,
A rua Luís de Camões,
O Paço,
O amigo Bonifácio,
O Real Gabinete Português,
Tanta tez
Suada, salgada
E todo este lugar
Banhado pelo mar.
Restou um corpo sem rotas,
Soçobrada frota,
Restou a memória,
Algo que errático
Perdeu a trajetória,
Algo que afro ou asiático
Em vós se agarra feito
Alga e algo
Que não consigo definir,
Heráldico,
Luz e visgo
De chão alagadiço...
Vede,
Litorâneos
Ou suburbanos,
Extemporâneos
Ou ibero-americanos,
Estamos todos
Impregnados
Do Eldorado castelhano,
Da alga e sal
Do mar lusitano.

sábado, 19 de março de 2011

Caim e Abel

Me espere um pouco
Que chego já.
Do que eu mais célere
Quem é no passo?

Somos todos irmãos!

Me espere um pouco;
Só eu que falto
Chegar no ponto,
Irmão do asfalto.

Somos todos irmãos!

Me espere um pouco
Que chego em riste.
Será que existe
Quem tem mais passo?

Somos todos irmãos!

Me espere um pouco,
Só eu que falto.
Será que existe
Alguém mais rápido,

(Somos todos irmãos!)

Menos incauto,
Singrando autos,
Irmão do passo
Com mais compasso?

Somos todos irmãos!

Me espere mais;
Passante sou
Também da pressa,
Quem vai depressa

(Somos todos irmãos!)

De lanche e pasta
Sem fé, desejo,
Minguado tejo
Correndo só

(Somos todos irmãos!)

Por nós, cabrestos
No passo lesto,
Pela cidade:
Palimpsesto.

Somos todos irmãos!

Me espere um pouco;
Passante sou
Também do medo
Do denso breu.

Somos todos irmãos!

Um pouco mais
Me espere, amigo.
Deveras corro
Tão só contigo,

(Somos todos irmãos!)

Nós dois, contíguos,
Passo após passo,
Irmão sem paço,
Sem mãe, regaço.

Somos todos irmãos!

Me esperem todos:
Moídos rostos,
Puídos, rotos,
De si cansados.

Somos todos irmãos!

Me esperem mais,
Vou já chegando,
Entanto vem,
Passo ante passo

(Somos todos irmãos?)

(Me esperam todos?)
Quiçá correndo,
Quiçá sem fôlego,
Mais um de pasta.

(Somos todos irmãos?)

(Me esperam todos?)
Tomar-me vai
Lugar – nem meu,
Nem teu: de breu!

Somos mesmo irmãos?

Assim que somos
Irmãos do acaso,
Do meu atraso,
Do lesto passo.

Somos todos irmãos!

Assim que somos
Caim e Abel,
Perdidos passos,
Irmãos sem pai.

Somos todos irmãos!

Espero todos
No breu do mundo,
Mas quem me chega?
Só vejo a sombra

(Somos todos irmãos?)

De um outro irmão,
Que só vagueia,
Expropriado,
Enigmático,

(Somos todos irmãos?)

Sem passo ou rumo,
Irmão do breu,
Sem um lugar
No nosso mundo.

Somos irmãos.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Cetáceo

I


Do barro ao macadame,
Do macadame ao asfalto,
Dos cortiços e casarios aos prédios,
Dos prédios aos arranha-céus,
Das vielas às alamedas
Das alamedas às intermináveis auto-pistas,
Gerei-me, formei-me e cresci incomensurável –
Criança desmamada nos peitos
Da fome e da exploração.

Cresci, bebi e fartei-me na burra de Balaão,
Nas tendas dos vendilhões do Templo,
Na bolsa dos mercadores sefarditas,
Dos italianos, burgaleses, flamengos e alemães,
Na usura dos Beneviste, dos Évora e dos DiNegro,
No ouro do Sudão, na prata de Potosi,
Nas feiras e praças de Antuérpia, Lyon, Frankfurt e Gênova,
Na cavalaria de Oliver Cromwel,
Nos jacobinos decapitados,
No assassinato de Marat,
Na execução de Danton,
No golpe do nove Termidor,
Na bengala brilhante dos Barões,
No Consulado de Bonaparte,
Na Batalha de Trafalgar,
Nos canhonaços de Villeneuve e Nelson,
Nos bolsos endinheirados
De Ford e Rockeffeller,
No esquadro e compasso
De Niemayer, Gropius e Le Corbusier.

Cresci, bebi e fartei-me
Nos Senhores que escravizaram seus servos,
Nos espoliadores dos povos,
Nas marteladas dos operários,
Nas mães que venderam seus filhos
Nos mercados e fábricas,
Nos homens que assistiram passivos
As mães e esposas se prostituírem.
Cresci, bebi e fartei-me
No Congresso Anarquista Internacional,
No luta e no sonho unionista
De Pelloutier, Proudhon, Monatte e Malatesta,
No mito de Geroges Sorel,
No sonho acalentador
De Vladimir, Rosa e Leon
Que agora é espinho e fere.

Hoje, vegetal, enredo-me
Por toda a vida que acorda e adormece,
Que come, bebe, veste, ama e fuma,
Mas jamais se farta,
Pois deseja o que não é desejo,
O não-desejo que brota fora da carne,
Neste vasto cipoal
Que dificulta o trânsito
E contém as mãos, o afago, o beijo,
Insinuando-se por todos os corações
Com tudo que jamais farta; infarta!

Sabes quem sou?
Eu, espasmo dos séculos,
Estorvo dos desuses,
Sempre adverso ao mundo natural,
Uma outra natureza
Intrusa da ordem e do Século
Que impôs aos homens
Seu mandato e regra,
A despeito de tanta labuta, de tanto suor
E do clamor ignoto da populaça?

Meu nome é Cetáceo –
Rara jóia de Caim e de Nimrode,
Ouro nos dedos do feliz burguês,
Frio cálculo da razão e da mais-valia
À imagem e semelhança
Do rito que sacrificou o mito
Nos altares embebidos de sangue e miséria.
Eu, Sodoma e Gomorra, Mamon,
Babel, Tebas de cem portas, Big Apple!


II

Já os primeiros raios de sol
Batem nos olhos do monstro,
E ele arfa, bufa.
Da madrugada de tiros e sirenes,
De álcool e tranqüilizantes
Nasce mais uma alvorada,
Não de galos ou pássaros,
Mas de um sol bestializado,
Para uma manhã metálica,
De cobre e fiação elétrica,
De asfalto e condução
Que já vai lotada para o centro
Desde às seis horas da manhã,
Repleta de gente mal-dormida,
Babando no ombro alheio.
O cetáceo não dorme
Apenas se lembra que é mais um dia
Para quem tentou dormir
E urra da tv e do rádio:
“- Oi, bom dia, estamos aqui
Na 101,5 mais uma vez juntos,
É hora de acordar. Faz sol lá fora
E o dia promete ser quente.
Meu nome é tua cara, teu lábio e tua tara
E eu tenho um recado para você
Que me leva no trem, no carro, ou a pé
Desde a infância até o escritório:
- Todos em mim, todos em mim,
A trabalhar, a trabalhar,
A produzir, a produzir!
A matar e a odiar,
A reclamar e a adoecer,
A se encarar e se espremer,
A esperar e a bocejar
Nas filas, peças de dominó,
A xingar e a calar,
A temer e a acreditar,
A praguejar e a aceitar,
A beijar e a escarrar,
A odiar depois de amar,
A comer e vomitar,
A chorar e trabalhar,
A sorrir sem ter o que,
A dormir ante a TV,
A caminhar e viajar
Com o cotovelo
Na cara de outrem,
Bicando o calo alheio,
Pedindo licença
A pernas, bundas e pés,
Enquanto tenta amar
E chegar ao trabalho.

Vamos seguindo aqui
Nas entranhas do monstro
E não se esqueça:
- Cuidado nos cruzamentos
O trânsito está complicado
E a impaciência é grande,
Atenção ao sinal:
- Vai ficar amarelo, agora, vermelho,
Podeis prosseguir. Marchai!
Marchai para os consultórios!
Marchai para as repartições!
Marchai para os escritórios!
Marchai para as viaturas!
Marchai para os guichês!
Marchai para os bancos!
Marchai para as estações!
Marchai pelas avenidas!
Marchai para os aeroportos!
Marchai sem qualquer porto!
Marchai por aí louco e torto,
Reto e morto,
Rei deposto,
Marchai para o posto
E enchei o tanque e o coração
De álcool e mau gosto,
Marchai para vossos lares!
Marchai para mim, em mim, de mim,
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Marchai, marchai, marchai, marchai
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Devorai!!!
Os próprios filhos
E a carne irmã,
A própria vida
Assim mesmo:
Putrefata e malsã,
Vagando a esmo
A trabalhar, a trabalhar,
A produzir, a produzir,
A execrar, a execrar
Quem não quer profissão
Para alimentar de sangue e cifras
O imenso coração do cetáceo!
Cansai, cansai
Dormi, dormi...”
Mas insone o poeta diz:
"- Não tenho lugar aqui!"
Ao que logo o monstro replica:
"- Tolo, eu sou todo o lugar
E lugar nenhum,
Consciência e desdita
Que aferroam todo o dia.
Dormi, dormi, meu filho dileto,
E continuai a berrar esse canto contra mim
De todos os becos e guetos."


III

Em cada casa e beco,
Um carcereiro dita as horas de sono.
Não respeita as queixas dos insones,
Qualquer anseio ou fome,
Nem os desejos dos amantes,
Brada feroz e o corpo
Levanta-se autômato, zumbi,
Estica os braços pálidos, de cera,
Passa as mãos por cara cadavérica,
Na frente do espelho
Que busca refletir imagem esmaecida,
A boca bafienta,
Enquanto a escova passa pelos dentes
E o corpo evacua medo
E os detritos do dia anterior.
Olhos baços, no entanto,
Insistem em tremeluzir,
Enquanto bebe café, lê o jornal,
Pega a pasta e a marmita
E mergulha nas tripas do Cetáceo.

Logo nas alamedas e avenidas
Que se estendem para além
Do horizonte coberto por prédios
E espetaculares arranha-céus
É conduzido com todos às obrigações diárias
Sem nenhum desejo para sentir,
Sem nenhuma palavra para negar,
Sem memória que recorde do corpo, o ser,
História e sentido que restaurem
O fio partido, algo que um dia
Chamaram de espírito e utopia.

E a despeito de tantas discussões,
De algaravias e de mortes,
Do jogo e das apostas,
Das drogas e das mulheres,
Do sexo e das certezas
Cuspidas e fumadas,
De tanto arroto e bocejo,
De tanto riso e bravata,
De tanta fumaça e loucura,
De tanto susto e silêncio
Dos lares contíguos,
Amontoados dos subúrbios,
Das mães que oferecem o peito mesquinho
Do consenso geral
Aos filhos do próximo século,
Sois corpo, nada mais do que corpo
Insuspeito!

O Cetáceo sorri e se regozija.
Exibe as magníficas
E complicadíssimas entranhas,
Os caminhos a seguir,
O tempo a cumprir,
Os papéis a assinar,
O status desejado,
A vida mais que determinada.
Ele tripudia, mostra sua escória,
Os filhos desejando o próprio ventre,
Devorando-se entre tiros e abutres.
Sorri sardônico, porque sempre
Haverá uma mulher ou um menino
A nos oferecer sexo e cigarros.

Eleva-se à mais alta
Das protuberâncias do seu estômago,
A mais ingente de todas as babéis
Para contemplar magnífica visão:
O bonde fiel aos trilhos,
O homem fiel à vida,
A vida fiel ao corpo,
O corpo fiel à maquina,
A máquina fiel ao monstro.
“- Que magnífica visão!”
O cetáceo rejubila-se,
De Wall Street manda-nos um beijo,
Da Ilha de Manhattan saúda a todos
A lutar pela ração diária das vitrines,
Dos anúncios e das meretrizes,
Pois ainda que uma mulher
Solte os cabelos e se jogue pela janela,
Que uma criança nasça
Coberta de sangue e avenida
Ou um velho corra nu pela auto-pista
Tudo sempre será o que foi:
Tráfego e Multidão.

“- Que magnífica visão!”

IV

À noite, as casas e os prédios
Recebem seus suarentos habitantes.
Os armários recebem cintos e gravatas.
“Boa noite, caro ouvinte,
Caro ouvinte-telespectador,
Boa noite de sono e traqüilizantes
E não se esqueça:
Amanhã, tem mais,
Amanhã, eu volto
Para de novo cuspi-lo
Em dias que insistem em nascer –
Dormi, dormi...”


V

Mas no outro dia,
Em qualquer dia,
05, 07, 11 ou 16,
23, 19, 21 ou novamente 11;
Em qualquer mês,
12, 10, 03 ou 04,
07, 09, 02 ou 08;
Em qualquer ano,
98, 2004, 95 ou 72,
Novamente em 98,
2001, 93 ou em 2002,
O corpo travado
Sem cronologia ou calendário
Não acorda nem levanta.
A cidade está em chamas;
Nero a incendiou.
O corpo está em chamas;
Roma incendiada,
E os aviões arremetem
Contra o edifício,
Despencam sobre nossas cabeças.
Homens-bomba escondem-se
Na garagem dos prédios,
No subterrâneo dos sonhos.
“É hora de acordar.
Acordai! Marchai!”
Já não podeis.
“Marchai, autômato!”
Já não quereis,
“Marchai, corpo!”
Já não sois.
“Há algo de errado”,
A programação se encerrou
Sem aviso.
“Há algo de errado,
De muito errado mesmo...”
Esta forma extrema,
Escura, crisálida,
Recusa...

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Par

Duas vidas tão diferentes,
Perfeitas em solidão de astro,
Conjugando-se, agora, em rota irregular
De meteorito errante, sem destino.
Essas vidas embevecidas
No laço breve dos dias e noites,
E és noite, madrugadas
De lua ensolarada,
Iluminando-te o rosto lhano
Sem sonho ou mistério,
Sem quimera ou segredo.
Em tua vida,
Todos têm pele, sabor, carícias,
O sonho insonhado, antes vivido,
Quimera transida de medo e desejo,
Segredo rasgado por leitos e veios
Ideal feito
De seio e regaço,
De promessa e abraço
Qual árvore de pomos pendidos,
Quase todos colhidos,
Iguarias comuns de raro quotidiano.
Quão diferentes nossas vidas!
Ainda assim se uniram,
Encararam-se e, após o fascínio,
Sobreveio o estranhamento.
Uma que é pura invento,
Teoria sem experimento,
Invenção jamais provada
Pelo vento, pelo mar e os homens,
Conservada como relíquia, dor
No fundo de gavetas esquecidas.
E a tua: (invejo-a!)
A vida sem reticências,
A interrogar vetustas exclamações.
Texto bem acabado,
Muitas vezes revisto,
Escrito na tênue folha marinha das águas.
Tua vida: queimadura, cicatriz,
Gozo e generosidade.
Belo 14 Bis, Zepelin,
Mais uma vez,
Alçando-se aos ares.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Poema

Durante horas de silêncio e sono,
De leitura e angústia,
Ante o cânone, ante incompreensível estro,
Ante confuso mundo, de tão claros enigmas,
Eu não sabia,
Mas o poema sempre esteve ali,
Qual ferida ou queixume,
Qual fruto ou negrume.
Deu o tempo e a técnica se fez no sofrimento:
- Fiat! disse algo dentro de mim
E, entre o fulgor e a escuridão, tímido, na penumbra,
Entre utopias deglutidas,
Poentas brochuras
E defuntas armas e canções
Contra os donos da ordem e do tempo,
Algo fundo revelou-se,
Fosso, abismo,
Exasperado grito
Ou simples pomo pendido.
Deu a hora e me precipitei,
Colhi o poema,
Trinquei os dentes nele
E o apreciei deveras,
Vociferado, em profundo negror
Com a boca esfaimada do mundo.
Senti sumo acre,
Sabor amaro,
Iniludível
E abismal.
Gostei
E não senti qualquer contentamento!
Hoje, ofereço-o,
Oceano ou ruína,
Fruto
Ou salto no abismo,
A quem quiser
Algo diferente do ópio, da fuga, da nuvem
E do frenesi diário e intenso,
Para sempre infenso
Às águas que afluem da memória.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Verbo

Na estiva das palavras,
Altercas, xingas, suas,
Imprecas contra o mundo,
Te tentas traduzir.

Na estiva das palavras,
Labor sempre penoso,
Tu queres existir,
Monumentalizar-te.

Na estiva das palavras,
Tu queres transgredir,
Sacar das mãos anéis,
Os signos mutantes.

Na estiva das palavras,
Tu sangras e respiras
Retórica e sofismas
De luta interminável.

Na estiva das palavras,
Gritaste: “- Crucifica-o!”
Também martirizado
Na ambígua cruz da história.

Na estiva das palavras,
Sem dúvida verteste
Sentenças incontáveis,
Doutrinas e linguagem,

Loquazes paladinos,
Astutos e prolixos,
Que sabem como o gárgula
Usar bem a garganta,

Lançar verboso líquido
A tantos corações
Logrados no artifício
Das fábulas e máximas.

Na estiva das palavras,
Disputas e recreios,
Embate de discursos,
Nas sendas do ideário,

Travaste arrebatado,
Filósofo ou poeta,
Retórico ou sofista,
Em dúvida inquietante

Pensando respondê-la
Com séria metafísica,
Com fé e ideologia
Em busca de ti mesmo,

Do mundo que circunda
Teu frágil coração
Com vasto palavrório
De púlpito e sermões;

De tudo que te aflige,
A própria realidade
Que buscas na linguagem -
Perfeita relação,

Total homologia
Da imagem co’o real,
Da coisa co’a palavra,
Idéias e juízos

Que fazem de ti mesmo
Homílias e quimeras,
Mentida ficção
De que és um novo Adão.

E agora: que fazer?
Ser dono das certezas
É coisa de descrer!
Tu jogas co’infinito...

Na estiva das palavras,
Aspiras ao eterno,
Restando só de nítido
Um ritmo e sentido

Cativos de si mesmos,
Embora sempre queiram,
Suando gente alheia,
Enfim tornar-se livres,

De si até ser livres,
Do que não nos cativa,
Do que mantém cativo,
Do que não grita vivo

No dorso do argumento,
No braço da palavra,
Na luta do operário,
Na estiva do poeta.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Pombas

No dia fraturado,
Ainda me comovo.
Pra mim não há melhor
Imagem que me evoque
A dor de ser aqui
Que a de contusa pomba
Que tenta em vão voar,
Do chão segura alçar-se.
Sou esta pomba feia,
Que manca pisa o dia,
Em crimes repartidos,
Ferindo todo o alheio,
Ferindo toda gente,
Que não se entende e vê
Que como aquela pomba,
De um ego desmedido,
Mas sempre ignorado,
Também corre perigo,
Mancando o tempo todo,
Enquanto sente a vida
Tão débil levantar-se,
Mas já ferida e breve
Num vôo incerto e frágil –
Sois ave de má sina!
Fazer o quê? E agora?
Pergunta-me o silêncio,
Em meio ao alarido
De quem se acha feliz,
Sem ver que também manca
Por baixo dos casacos,
De capas e aparências
Expostas nas vitrines
Das lojas e balcões
Que cremes e cosméticos
Of’recem nos reclamos
A eterna juventude,
Com código de barras,
A dóceis avezinhas.
Não há respostas certas!
Somente mais perguntas
Que são sempre caladas,
Mas se materializam
No jovem que me assalta
Das vielas da miséria,
Na pomba que não voa
E cata estas migalhas
Ao rés de um chão mesquinho,
Sem ver que se aproxima
Um carro a esmagá-la.
Enfim, as suas penas,
Depois da imensa roda
Que passa impiedosa
Por sobre frágil corpo,
A mim comoverão
Num dia fraturado
Que conta para todos
A pena que por muitos
Eu sinto agora, aqui
Em meio às minhas penas –
Fantasmas de mim mesmo.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Mitologias

Atropelados
Por tanto pressa
Foi nosso amor,
Foi nossa dor

Nas vastas vias
Congestionadas
De estreitas gentes
Em amargor

Nas mãos de Chronos
E devorando
Os próprios filhos,
Mitologias,

Enquanto guiam,
Entre Tifeus,
Titãs e cérberos
E vãs certezas,

Os próprios carros,
Os próprios medos
De sós ficarem
Sem posto ou carro,

Sem cargo ou farra,
Paralisadas
E engarrafadas
Nos vãos, semáforos

De uma avenida
Que só conduz
A inútil pressa
De quem perdeu

Há muito tempo
As mãos e o véu,
Úbere céu
Que nos atavam.

E agora assim
Sem nada mais
Que nos vincule
Sem canto ou messe

Para cantar,
Para ceifar
E que traduzam
Feroz vertigem,

Qualquer verdade,
Perdida herdade
Que nos acolha,
E nos recolha

De frio chão,
Procuro em vão
Por nós, velames,
Por quilha e amarras,

Velhas canções,
Arras, camões,
Canhões, guitarras
Num peito arcano

Que mesmo só
Sem vela e insano
Na estrada imensa
Insiste e canta.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ferocidade

Revela teu ódio
Nas grutas acústicas
De um peito ecoando
A dor da cascata
Sem fim desabando,
Mordendo na pedra
A própria desdita.
Vá! roto e precário
De tal desmazelo
Do choque imprevisto
Do escarro na esquina
Dos olhos cruéis
Que fazem tua cara
Cartaz luminoso,
Falácia venal,
Um palco de socos,
De chutes e murros,
De fera disputa
Por álcool e remédios,
Por roupa e alimento,
Por fogo e prazer
Nas sendas soturnas
Da grande cidade
Que encolhe miúdo
Teu corpo tão frágil
À sombra terrível
De atrozes gigantes.
“E agora, José?”
Cadê tua fala
Cadê teu discurso,
Teus pobres excursos
Qual asa ignota –
Voluta partida
Sem haste ou coluna?
Teu peito se ufana,
Mas pobre se infarta
Do que te enfatua,
Do que te enlouquece,
E logo enfastia,
Inútil cosmético,
Inútil doença...
Não tem mais a vida
Aquela beleza
Sensível das musas,
Das frágeis heróidas,
Carnívora flora!
E o que te envilece
É a penha estourada,
Floresta arrasada
Em ávido empório,
É a carne doméstica
À vida selvagem
Dos homens polidos
Jogada de súbito
Sem único aviso.
Por isso, velhaco,
Te fazes feroz
Entre hienas noturnas,
Felinos rapaces,
Que as presas espreitam
Ou sobras de açougues
Disputam famintas
Deixadas por feras
Maiores após
De todo fartarem-se.
Mas se nem entre hienas
Tu podes viver
Ou nem co’os chacais
Tu podes comer
De casca e couraça,
Então te revestes
Tal qual um tatu
Metido na toca
De um alto edifício
Com ratos e cobras.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Manhattan Tower














Manhattan Tower, 89,
Tu te ergues
Poderoso e colossal
Da Avenida Rio Branco
Ante súditos de asfalto e carne,
De cimento e aço.
Templo de gravatas e sapatos,
De pastas e investimentos,
É em ti que acionistas
E investidores divertem-se
Disputando cifras,
Em meio às oscilações do mercado,
Vaticinando lucros,
Diante das taxas de juros
Do FED e dos BCs,
Depreciando mercados
E economias,
Ante os humores cambiais,
A despeito de fé, crença
Ou de qualquer drama familiar,
Enquanto compramos
O sagrado pão de cada dia.
Tu, que não és um,
Que não és único
Mas inumerável
Mundo afora,
Geração fustigada pelo vento,
Fragas que se atiram contra os céus,
Clarão envidraçado
De aço e de alumínio
A refletir,
Em mil centelhas,
A luz ligeira
De Xangai, Taipei,
Chicago, Kuala Lumpur,
Hong Kong e Nova Iorque,
Burj Khalifa, Willis Tower,
Taipei 101, Petronas Towers,
Central Plaza,
Empire State Building,
Titã coruscante,
Contemplas vítreo e concreto
Teu irmão
De ponteiros e horas indecifráveis
Em direção ao qual, da Avenida,
Todos os olhos se lançam
Aflitos ou indiferentes.
Irmão que, por sua vez,
Encara firme e altivo
O pai cansado de exploração
A contemplar mudo
Os detritos da baía,
A fração inumana das gentes
Pelas ruas e becos...
Ó Irmãos ingentes,
Filhos de um gigante –
Ó Família excelsa
De concreto e laje,
Há carne imunda e fétida
Que se espreme, em vão,
Sob tuas marquises
Contra o frio e a chuva
De teus prognósticos,
Enquanto de vós,
Bem protegidas,
Retinas assustadas
Buscam saudosas
As Torres de outrora,
Consolam-se
Entre álcool e aspirinas,
Em meio a céus
Rasgados de gritos
E WTCs,
De precipícios
E cimitarras chamejantes,
Enquanto buzinas e sirenes
Vaticinam pavores,
Sinistros augúrios
Avenida afora;
Consolam-se,
Entre destroços
De um firmamento estilhaçado,
Com aqueles antigos versos
Que diziam:
“Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan...”
Enquanto o tráfego e a baía
Refletem ardis
E o mudo perigo que espreita.