A Antônio Cícero e
Letícia Valentim
É o que parece,
Por isso tantos conflitos,
Tantos gritos e ritos,
Teogonias e preces.
Por isso tantas crenças,
A História e o Tempo,
A voz de Deus
Onde há somente
O sussurro do vento.
É o que parece,
Por isso este poema
Contra a voz cartesiana,
Contra todo sistema
Que nos engana.
Por isso este poema,
Que também será esquema
Propenso ao erro,
Se apenas for
Aquilo com o qual quer parecer-se
Mas com ele não se parecer.
Por isso tantas formas,
O anseio por ordem,
O ilusório encanto da norma,
O canto e as essências
Onde só há aparência.
É o que parece.
E não há
Como ser diferente.
É a virtude
Ou engano da mente.
O que se diz e ilude,
É o interminável museu
Dos discursos do eu.
E o que ouvi
De mais bonito
Foi uma criança dizer,
Após muito contar,
Que depois do mil
Só há o infinito.
É o que parece.
E malgrado
Alguém dissesse:
“Tudo é!”
Não estaria mentindo;
Tudo é!
E com isso se parece.
Não há como dizer
O que é o ser
E entre o que digo ser
E como aos outros me pareço
Vivo e desapareço.
É o que parece
E só ao dizê-lo
Já me traio
Pela linguagem
E mergulho
Nessa imensa viagem
De querer dizer tudo:
O que, efeméride,
Ganha breve aspecto,
Surge e desaparece,
O que não ganha tempo
Para dizer-se
Sequer coisa ou ser,
O que resplandece
Para logo perecer,
Tudo que com a vida
Se parece e que deixa
De com ela parecer-se
Quando se torna
Discurso, regra ou prece.
Tudo que é
E se torna
Uma outra natureza,
Dura empresa
Que a vida
Não mais reconhece.
Um comentário:
Este poema nasceu da conversa, um tanto que insólita, que tive com uma criança de seis anos e após ler várias vezes "O fim da vida", poema de Antônio Cícero que integra seu último livro de poemas: "Porventura", o qual transcrevo abaixo:
"Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.
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