terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Perdido


Perdi-me na combustão do dia.
Fui mosca tonta dos pés-sujos,
Mariposa louca e incendiária,
Sensualidade e ávida cupidez,
Fastio feito de misoneísmo,
Dias em que habitam tardes
Quase mortas de passageiros sonolentos
Nos bancos encardidos dos coletivos.
Ah, se alguém gritasse...
Ah, se alguém se incendiasse
E se matasse e explodisse
Uma bomba feita de sangue e dor
De grito e pavor
Ante as basílicas repletas de eco
De cada coração!
Ah! se alguém se sentasse ao meu lado,
Ouvisse-me as queixas e alegrias,
E acolhesse, em compaixão,
Minhas inúteis solicitudes e favores...

Perdi-me no seio forte,
No aroma doce e fétido,
Bêbado do néctar suarento
Que se escorre dos corpos da estiva,
Do soro enjoativo
Dos escritórios e repartições,
Da fadiga odorífica das noites de verão,
Dos pagodes incansáveis dos subúrbios
E do carrossel orgiástico dos puteiros.
Perdi-me no seio da grande cidade
Que grita contra si
Na face muda e silente
Dos que retornam do trabalho.
Perdi-me com o peito arquejante,
Com todos os sentidos e pensamentos alterados
Em noite lúbrica de narcóticos.
Perdi-me sexualmente,
Com o beneplácito de Cristo,
Sem raízes ou entendimento
Na curva acentuada das estradas
Da cidade mundial.

Transviei-me em suas luzes:
Brilhei e me ofusquei entre vapores
Expelidos por canos pretos
De gargantas e escapamentos.
Incendiei-me, louco, consumindo-me,
Consumindo-te
Nas sendas do fascínio e do tédio,
Tonto da mesmice
Das caras sufocadas dos bípedes enfadados
A se rastejarem por concreto
De vidas desprovidas de sopro animador.
Perdi-me em mil cabeçadas, em milhares
De lâmpadas, janelas, caras,
Em quibes frios e enjoativos
Para estômagos ulcerados.
Perdi-me nalgum sexo doente, nalgum regato poluído,
No quilômetro da saída anunciada,
Mas lá só havia mais estrada, mais cidade.

Corri nu por vielas irreais,
Desfraldei bandeiras, organizei comícios,
Berrei no megafone, deitei na avenida
Pela qual hoje passo mudo e depurado
Por faixas, sinais, apitos e a moda.
Quis atear fogo ao próprio corpo
Para que minha miséria fosse uma tocha
Na noite espectral desta cidade
Feita de alarido e escuridão.
Já quis muitas coisas, inclusive
Que todos quisessem tanto quanto eu,
Já até, ateu, clamei a Deus, no escuro,
Sob pancadas e coturnos...
Mas só obtive a traição
De quem nunca requereu minha fidelidade,
O tumulto de uma multidão incompreensível
Atropelando-me num tropel
De concreto, asfalto, avenida, indústria e comércio.
Tornaram-me um canalha sem sonhos
Ou eu me tornei um
E agora circulo por aí, desgarrado
Nos refugos urbanos,
Ostentando na estampa da camisa
O rosto de Che
Ao lado da menina que traz no peito
Um I love New York
Ou outra que vai pela pista
De camisa vermelha com a foice e o martelo
Sobre o seio esquerdo sem ser incomodada
Na cidade capitalista!

Alguém pode me dizer
Em que lâmpada dei minha última cabeçada,
Quando deixei de dar murro em ponto de faca,
Quando passei a seviciar meninos
E a me entregar a atos masturbatórios
Com meninas de dez anos?
Aquele pulha tinha razão quando disse
Que a Babilônia é o fim e o recreio de toda a vida
E que nunca fomos trombetas ou colunas de fogo
A anunciar e proteger a Éden socialista.
Agora temos apenas esta Babel sobre nossas cabeças!

Perdi-me...
Hoje, estou em silêncio
No formigueiro de concreto e asfalto,
Arranhando a languidez do azul,
Consumido por aranha sempre a tecer, infatigável,
Dominando tudo, todos com sua sombra
E ética confusas, impondo sua urdidura cruel,
Sempre disposta a ganhar mais dinheiro,
A excluir mais viventes,
A inocular outros corações...
Dia a dia, sua rede cresce,
Ramifica-se em todas as direções,
Unindo cada ser e lar,
Cada coração e alma,
Tornando irmã toda a vida
De teia que urdiu.

Já desafiei ruas e avenidas contra o conformismo,
Esquinas e arranha-céus,
Imprecando contra carros e semáforos.
Hoje, retorno de ônibus para casa,
Fraterno a todos, em conformidade,
Compreendendo inteiramente
O cansaço e a solidão de cada classe e profissão.

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