sexta-feira, 30 de abril de 2010

Odisséia

















Caudal enorme
De pressa e de ódio,
No leito asfáltico,
Perturba os homens.

Calor de máquina
De brita e de aço
Poreja a pele,
Sufoca o peito,

Sufoca o pleito,
E a todos deixa
Em alta noite
Insones, nulos.

E oprime a boca
Que pede vez,
Que pede voz,
Um pouco d’água,

A fim de sede,
Tal qual de Tântalo,
De fera estiva
Matar enfim.

Mas, há bebida
Que te refaça,
Um calmo rio
De leito manso

Que o lasso músculo
Vigore e molhe?
Não há natura
Que a crosta fure

E acalme a fúria
Febril e muda!
Não há natura;
Só louca lua

Desnuda e gélida
Que se insinua
De noite arcaica,
Por entre gretas

De tua dor,
E nu te deixa
De couro e seda
Com teus broquéis.

sábado, 17 de abril de 2010

Pipa




















Se a lesta pipa passar em frente,
Num dia claro, da tua janela
Com franca vista do pôr-do-sol,
Estica o braço para pegá-la,
Mas não a apare no pleno vôo;
Sente a rabiola passar apenas
Pelos teus dedos, ligeira e breve,
Pois se sustenta no ar tão somente
Por brisa e linha fina e volúvel.
E se outra vez o acaso do vento,
Pela janela do apartamento
Em que tu moras, encaminhá-la,
Perceba bem que já não há linha
Que a leve leve por estes céus,
Sem deus ou nuvens a organizá-los;
Somente um vento que forte e doido
Mexe febril em toda a paisagem
E a pipa arroja contra a janela
De um edifício que muito lembra
Adamastor no silêncio grave
Do aço, concreto, viga e fastio.
Portanto, deixe que adentre anônima,
Sem epopéia, cantor ou fama:
Ave abatida, louca avoada,
Em desafio contra fachada
De mil janelas sempre fechadas,
No breve instante de um vento leste.