Ó tu terrível pai dos desgraçados,
Deus de todos que vagam derrotados,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Pai que por ser tão pródigo e ubíquo,
Fez do homem tanto santo quanto iníquo,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Primordial senhor de todo o andrógino
Que hoje afliges o devasso e o misógino,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Ó fé sem nenhum culto ou liturgia,
Inspiraste a mais negra litania,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Ó tóten ignoto da memória,
Cúmplice do ladrão, de toda escória,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Deus de quem elabora, vil, as farsas
E em transe bebe o sangue dos comparsas,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Pai do que afoga as mágoas na cachaça
E vive um dia-a-dia de desgraça,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Quem põe a quase todos de joelho
Diante de sinistro escaravelho,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Aquele que nos leva, em ânsia e febre,
A tudo dissipar num lance breve,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Ó tu, Pai da cobiça que me aferra
E nos conduz à luta, à inveja e à guerra,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Cão feroz que devora nossa entranha,
Mercador que co’a vida faz barganha,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Pai daqueles que clamam por Jesus,
Mas somente ao inferno fazem jus,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Senhor de quem se assola no cigarro
E ao mundo só oferece o seu escarro,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Sugeres o poeta e até o asceta
E imprimes tua marca à toda meta,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Terror que nos enreda em fortes súcubos,
Paixão que nos persegue até o túmulo,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Moral que leva mesmo os mais notáveis
À fome e à desmesura incontroláveis,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Tu cuja mão engendra os artifícios
De vidas que se perdem entre edifícios,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Deus do acaso, incidente eventual,
Jantas conosco, cúpido e letal,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Tu que tudo vês, nossa atroz miséria,
Malgrado vida pródiga e venérea,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Caído como tu do firmamento,
Fui expulso também do pensamento,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Satã, ouve, portanto, esta oração,
Com que cubro meu corpo em ablução,
(Tem pena, Satã, desta carne deletéria)
Que aqui devoto a ti, toda a semana,
Pai e razão da enorme angústia humana,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Origem do que chamam ser humano,
Tudo que torna nosso mundo insano,
Tem pena, Satã, desta carne deletéria.
Sou poeta,nascido aos 24/02/1976 em Porto Alegre. Meus poetas tutores são Drummond, Baudelaire e Fernando Pessoa. São eles que orientam meu pensamento e labor poético. Este blog é feito para quem gosta de poesia Publicarei nesta página, portanto, alguns poemas de minha autoria e também de outros grandes poetas, além de comentários sobre meus poemas e de outros escritores.
quinta-feira, 5 de maio de 2011
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Párias
Acendes a fogueira
Que não é a bem faceira
De roda e de brincar,
De festa e São João
Mas gélida de agosto,
De ser todo em desgosto
Acesa pra espantar
Baratas e friagem,
Sob hirta e fria laje,
Sob hirta e fria noite
Escassa, de estiagem.
Tão fria que arrepio
Provoca qual açoite
De látego no corpo
Baldio, correntio,
Na trágica orfandade
Dos párias da cidade,
Escravos sem senzala.
Entanto tal fogueira
Dos sem eira nem beira,
De restos que tu catas
De esquinas e lixeiras,
Dissipa chama rala
Que pouca força tem
Ao frio secular
Que vem de tropical
Cidade americana
Enfim subjugar,
Enfim de ti afastar
Os ratos que também
Te correm pelos pés.
Contigo todos comem
Semelhos a novo homem
Que rói a velha lápide
Decrépita e ancestral
Que afunda em lamaçal.
E sob rija laje,
Concreto cru de ultraje,
Se esfria até a vontade
Da pobre mão pedinte,
De ser tornado helminte,
Esmolas suplicar –
Terrível condição,
Gravosa de aleijão,
Que além desta matéria
Te inflige a vil miséria.
Dormir é o que tu queres,
Dormir para esqueceres
A frágil noite e seres
Que habitam estes pântanos
De sapos e elefantes
Comendo a cria infante
Com molho de alcaparras
Em meio a loucas farras,
Enquanto tu escarras
Um rio intolerante
Aos pés de nossas casas.
Que não é a bem faceira
De roda e de brincar,
De festa e São João
Mas gélida de agosto,
De ser todo em desgosto
Acesa pra espantar
Baratas e friagem,
Sob hirta e fria laje,
Sob hirta e fria noite
Escassa, de estiagem.
Tão fria que arrepio
Provoca qual açoite
De látego no corpo
Baldio, correntio,
Na trágica orfandade
Dos párias da cidade,
Escravos sem senzala.
Entanto tal fogueira
Dos sem eira nem beira,
De restos que tu catas
De esquinas e lixeiras,
Dissipa chama rala
Que pouca força tem
Ao frio secular
Que vem de tropical
Cidade americana
Enfim subjugar,
Enfim de ti afastar
Os ratos que também
Te correm pelos pés.
Contigo todos comem
Semelhos a novo homem
Que rói a velha lápide
Decrépita e ancestral
Que afunda em lamaçal.
E sob rija laje,
Concreto cru de ultraje,
Se esfria até a vontade
Da pobre mão pedinte,
De ser tornado helminte,
Esmolas suplicar –
Terrível condição,
Gravosa de aleijão,
Que além desta matéria
Te inflige a vil miséria.
Dormir é o que tu queres,
Dormir para esqueceres
A frágil noite e seres
Que habitam estes pântanos
De sapos e elefantes
Comendo a cria infante
Com molho de alcaparras
Em meio a loucas farras,
Enquanto tu escarras
Um rio intolerante
Aos pés de nossas casas.
sexta-feira, 15 de abril de 2011
Natureza
Chupa-me
Com boca, língua e lábios tantalescos.
Chupa
Teu picolé fresco,
E baba e ama e sua
Minha genitalha
Sob o sol tórrido,
Sob um céu hórrido
De recalcada vindita,
Na praia do mar
Que conspira em silêncio,
Embora marulhoso,
Confrontando-se com a pedra
Em rancorosa desdita.
Num carro que a areia
Planeja engolir
Semovente, sorrateira
Tanto o herói quanto a sereia –
Orla que devora tudo,
O pulso, o músculo,
Auroras e crepúsculos
Litoral irascível,
Sequioso,
Como tu,
Ó boca, bacante
Abocanhando-me,
Despindo-nos de tudo
De qualquer linho ou veludo,
Todo o tecido
Esgarçado, franzido
No jeans da tua levi’s
Nesta hora indefenível,
Enquanto, além,
A floresta fumegante,
Brasil, braseiro,
Ampla terra de ninguém,
Arde
Na pélvis
Das meninas durante
As tardes e noites,
Noite adentro
Em boites,
Prostíbulos,
Turíbulo
Com que incensamos o dia
E a atmosfera
Que nos desce e se espalha
Das carvoarias,
Grossa, fornalha,
Feito hera
Sobre nossas casas
E as gaiolas dos gaturamos
Enquanto gozamos...
Com boca, língua e lábios tantalescos.
Chupa
Teu picolé fresco,
E baba e ama e sua
Minha genitalha
Sob o sol tórrido,
Sob um céu hórrido
De recalcada vindita,
Na praia do mar
Que conspira em silêncio,
Embora marulhoso,
Confrontando-se com a pedra
Em rancorosa desdita.
Num carro que a areia
Planeja engolir
Semovente, sorrateira
Tanto o herói quanto a sereia –
Orla que devora tudo,
O pulso, o músculo,
Auroras e crepúsculos
Litoral irascível,
Sequioso,
Como tu,
Ó boca, bacante
Abocanhando-me,
Despindo-nos de tudo
De qualquer linho ou veludo,
Todo o tecido
Esgarçado, franzido
No jeans da tua levi’s
Nesta hora indefenível,
Enquanto, além,
A floresta fumegante,
Brasil, braseiro,
Ampla terra de ninguém,
Arde
Na pélvis
Das meninas durante
As tardes e noites,
Noite adentro
Em boites,
Prostíbulos,
Turíbulo
Com que incensamos o dia
E a atmosfera
Que nos desce e se espalha
Das carvoarias,
Grossa, fornalha,
Feito hera
Sobre nossas casas
E as gaiolas dos gaturamos
Enquanto gozamos...
sábado, 2 de abril de 2011
Só
Assomo de raiva,
Cansado de tráfego,
Na lívida alcova,
Após o trabalho,
Tu queres prazer.
Amor tu desejas,
Amor, entretanto,
Tu queres sentir
Vibrando no corpo.
Que corpo, que amor
Se todo o fervor
Gastaste nas ruas,
Real sacrifício
De um corpo arruinado
No estuo do sangue?
Tesão vem de pílulas,
Amor das revistas.
Consome, criança,
Porção que te cabe.
Não sofras, não ames,
Encenas tão bem
Tesão e teus casos,
Amor infinito:
Teatro do ser.
Cartório haverá
Que te restitua
O eterno desejo
De amar para sempre –
Clangor corporal.
Por isso não chores
(De fato, não choras!)
A raiva de agora,
Teu pênis caído
É mero detalhe
De amor velho e gasto,
De um corpo abatido
Do dia e semana.
Agora, porém,
Chegou teu remanso:
O fim-de-semana
No rádio a canção
Renova teu ânimo
Seduz com promessas
De um sábado à noite
Repleto de amor.
A vida é a arte
Do encontro já diz
Ditado da moda.
Então, sai à luta,
Criança inconstante.
Nas ruas e bares
Conversas e danças,
Teu copo de uísque
Com outros tilinta,
Pois ébrio de amor
Almejas estar
Nas ilhas de amores,
Ainda que dure
O parco momento
Do orgasmo comprado.
E à noite sozinho,
Depois do motel,
Transido de frio,
Calado em perguntas,
Tu lanças um grito
E escutas somente
Silêncio e sigilo
Dos corpos alheios
Entre ecos profundos.
Cansado de tráfego,
Na lívida alcova,
Após o trabalho,
Tu queres prazer.
Amor tu desejas,
Amor, entretanto,
Tu queres sentir
Vibrando no corpo.
Que corpo, que amor
Se todo o fervor
Gastaste nas ruas,
Real sacrifício
De um corpo arruinado
No estuo do sangue?
Tesão vem de pílulas,
Amor das revistas.
Consome, criança,
Porção que te cabe.
Não sofras, não ames,
Encenas tão bem
Tesão e teus casos,
Amor infinito:
Teatro do ser.
Cartório haverá
Que te restitua
O eterno desejo
De amar para sempre –
Clangor corporal.
Por isso não chores
(De fato, não choras!)
A raiva de agora,
Teu pênis caído
É mero detalhe
De amor velho e gasto,
De um corpo abatido
Do dia e semana.
Agora, porém,
Chegou teu remanso:
O fim-de-semana
No rádio a canção
Renova teu ânimo
Seduz com promessas
De um sábado à noite
Repleto de amor.
A vida é a arte
Do encontro já diz
Ditado da moda.
Então, sai à luta,
Criança inconstante.
Nas ruas e bares
Conversas e danças,
Teu copo de uísque
Com outros tilinta,
Pois ébrio de amor
Almejas estar
Nas ilhas de amores,
Ainda que dure
O parco momento
Do orgasmo comprado.
E à noite sozinho,
Depois do motel,
Transido de frio,
Calado em perguntas,
Tu lanças um grito
E escutas somente
Silêncio e sigilo
Dos corpos alheios
Entre ecos profundos.
sábado, 26 de março de 2011
Herança
Por que chorais
Mar seco ausente,
Sem úmido elemento?
Por que chorais
Como se quisésseis
Com vossas lágrimas
De marítima saudade
Restituir-lhe vigor e força?
Por que protestais
Se não podeis
Arrancar-vos as pernas e os braços,
Se há vice-reis
Por onde vão tantos passos?
Se seguis tão escasso,
Perdido e sem grei?
Vede bem:
A cidade já foi inundada
(E acho que sempre esteve)
E da enxurrada,
Após fevereiro e março,
Após Cabral e Gama,
Restou um simples sargaço,
O sapato roto, sem cadarço –
Nau sem amarras,
Em vossos pés encalhada,
Carcaça de beira de estrada.
Quem sabe uma escama,
Algo que vos proclama
Brasileiro?
Rio de Janeiro?
Sem paradeiro?
Desterrado panorama
Que vos amalgama
A camas e mucamas...
Restou a avenida Beira-mar,
O Forte,
A rua Luís de Camões,
O Paço,
O amigo Bonifácio,
O Real Gabinete Português,
Tanta tez
Suada, salgada
E todo este lugar
Banhado pelo mar.
Restou um corpo sem rotas,
Soçobrada frota,
Restou a memória,
Algo que errático
Perdeu a trajetória,
Algo que afro ou asiático
Em vós se agarra feito
Alga e algo
Que não consigo definir,
Heráldico,
Luz e visgo
De chão alagadiço...
Vede,
Litorâneos
Ou suburbanos,
Extemporâneos
Ou ibero-americanos,
Estamos todos
Impregnados
Do Eldorado castelhano,
Da alga e sal
Do mar lusitano.
Mar seco ausente,
Sem úmido elemento?
Por que chorais
Como se quisésseis
Com vossas lágrimas
De marítima saudade
Restituir-lhe vigor e força?
Por que protestais
Se não podeis
Arrancar-vos as pernas e os braços,
Se há vice-reis
Por onde vão tantos passos?
Se seguis tão escasso,
Perdido e sem grei?
Vede bem:
A cidade já foi inundada
(E acho que sempre esteve)
E da enxurrada,
Após fevereiro e março,
Após Cabral e Gama,
Restou um simples sargaço,
O sapato roto, sem cadarço –
Nau sem amarras,
Em vossos pés encalhada,
Carcaça de beira de estrada.
Quem sabe uma escama,
Algo que vos proclama
Brasileiro?
Rio de Janeiro?
Sem paradeiro?
Desterrado panorama
Que vos amalgama
A camas e mucamas...
Restou a avenida Beira-mar,
O Forte,
A rua Luís de Camões,
O Paço,
O amigo Bonifácio,
O Real Gabinete Português,
Tanta tez
Suada, salgada
E todo este lugar
Banhado pelo mar.
Restou um corpo sem rotas,
Soçobrada frota,
Restou a memória,
Algo que errático
Perdeu a trajetória,
Algo que afro ou asiático
Em vós se agarra feito
Alga e algo
Que não consigo definir,
Heráldico,
Luz e visgo
De chão alagadiço...
Vede,
Litorâneos
Ou suburbanos,
Extemporâneos
Ou ibero-americanos,
Estamos todos
Impregnados
Do Eldorado castelhano,
Da alga e sal
Do mar lusitano.
sábado, 19 de março de 2011
Caim e Abel
Me espere um pouco
Que chego já.
Do que eu mais célere
Quem é no passo?
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco;
Só eu que falto
Chegar no ponto,
Irmão do asfalto.
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco
Que chego em riste.
Será que existe
Quem tem mais passo?
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco,
Só eu que falto.
Será que existe
Alguém mais rápido,
(Somos todos irmãos!)
Menos incauto,
Singrando autos,
Irmão do passo
Com mais compasso?
Somos todos irmãos!
Me espere mais;
Passante sou
Também da pressa,
Quem vai depressa
(Somos todos irmãos!)
De lanche e pasta
Sem fé, desejo,
Minguado tejo
Correndo só
(Somos todos irmãos!)
Por nós, cabrestos
No passo lesto,
Pela cidade:
Palimpsesto.
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco;
Passante sou
Também do medo
Do denso breu.
Somos todos irmãos!
Um pouco mais
Me espere, amigo.
Deveras corro
Tão só contigo,
(Somos todos irmãos!)
Nós dois, contíguos,
Passo após passo,
Irmão sem paço,
Sem mãe, regaço.
Somos todos irmãos!
Me esperem todos:
Moídos rostos,
Puídos, rotos,
De si cansados.
Somos todos irmãos!
Me esperem mais,
Vou já chegando,
Entanto vem,
Passo ante passo
(Somos todos irmãos?)
(Me esperam todos?)
Quiçá correndo,
Quiçá sem fôlego,
Mais um de pasta.
(Somos todos irmãos?)
(Me esperam todos?)
Tomar-me vai
Lugar – nem meu,
Nem teu: de breu!
Somos mesmo irmãos?
Assim que somos
Irmãos do acaso,
Do meu atraso,
Do lesto passo.
Somos todos irmãos!
Assim que somos
Caim e Abel,
Perdidos passos,
Irmãos sem pai.
Somos todos irmãos!
Espero todos
No breu do mundo,
Mas quem me chega?
Só vejo a sombra
(Somos todos irmãos?)
De um outro irmão,
Que só vagueia,
Expropriado,
Enigmático,
(Somos todos irmãos?)
Sem passo ou rumo,
Irmão do breu,
Sem um lugar
No nosso mundo.
Somos irmãos.
Que chego já.
Do que eu mais célere
Quem é no passo?
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco;
Só eu que falto
Chegar no ponto,
Irmão do asfalto.
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco
Que chego em riste.
Será que existe
Quem tem mais passo?
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco,
Só eu que falto.
Será que existe
Alguém mais rápido,
(Somos todos irmãos!)
Menos incauto,
Singrando autos,
Irmão do passo
Com mais compasso?
Somos todos irmãos!
Me espere mais;
Passante sou
Também da pressa,
Quem vai depressa
(Somos todos irmãos!)
De lanche e pasta
Sem fé, desejo,
Minguado tejo
Correndo só
(Somos todos irmãos!)
Por nós, cabrestos
No passo lesto,
Pela cidade:
Palimpsesto.
Somos todos irmãos!
Me espere um pouco;
Passante sou
Também do medo
Do denso breu.
Somos todos irmãos!
Um pouco mais
Me espere, amigo.
Deveras corro
Tão só contigo,
(Somos todos irmãos!)
Nós dois, contíguos,
Passo após passo,
Irmão sem paço,
Sem mãe, regaço.
Somos todos irmãos!
Me esperem todos:
Moídos rostos,
Puídos, rotos,
De si cansados.
Somos todos irmãos!
Me esperem mais,
Vou já chegando,
Entanto vem,
Passo ante passo
(Somos todos irmãos?)
(Me esperam todos?)
Quiçá correndo,
Quiçá sem fôlego,
Mais um de pasta.
(Somos todos irmãos?)
(Me esperam todos?)
Tomar-me vai
Lugar – nem meu,
Nem teu: de breu!
Somos mesmo irmãos?
Assim que somos
Irmãos do acaso,
Do meu atraso,
Do lesto passo.
Somos todos irmãos!
Assim que somos
Caim e Abel,
Perdidos passos,
Irmãos sem pai.
Somos todos irmãos!
Espero todos
No breu do mundo,
Mas quem me chega?
Só vejo a sombra
(Somos todos irmãos?)
De um outro irmão,
Que só vagueia,
Expropriado,
Enigmático,
(Somos todos irmãos?)
Sem passo ou rumo,
Irmão do breu,
Sem um lugar
No nosso mundo.
Somos irmãos.
quarta-feira, 9 de março de 2011
Cetáceo
I
Do barro ao macadame,
Do macadame ao asfalto,
Dos cortiços e casarios aos prédios,
Dos prédios aos arranha-céus,
Das vielas às alamedas
Das alamedas às intermináveis auto-pistas,
Gerei-me, formei-me e cresci incomensurável –
Criança desmamada nos peitos
Da fome e da exploração.
Cresci, bebi e fartei-me na burra de Balaão,
Nas tendas dos vendilhões do Templo,
Na bolsa dos mercadores sefarditas,
Dos italianos, burgaleses, flamengos e alemães,
Na usura dos Beneviste, dos Évora e dos DiNegro,
No ouro do Sudão, na prata de Potosi,
Nas feiras e praças de Antuérpia, Lyon, Frankfurt e Gênova,
Na cavalaria de Oliver Cromwel,
Nos jacobinos decapitados,
No assassinato de Marat,
Na execução de Danton,
No golpe do nove Termidor,
Na bengala brilhante dos Barões,
No Consulado de Bonaparte,
Na Batalha de Trafalgar,
Nos canhonaços de Villeneuve e Nelson,
Nos bolsos endinheirados
De Ford e Rockeffeller,
No esquadro e compasso
De Niemayer, Gropius e Le Corbusier.
Cresci, bebi e fartei-me
Nos Senhores que escravizaram seus servos,
Nos espoliadores dos povos,
Nas marteladas dos operários,
Nas mães que venderam seus filhos
Nos mercados e fábricas,
Nos homens que assistiram passivos
As mães e esposas se prostituírem.
Cresci, bebi e fartei-me
No Congresso Anarquista Internacional,
No luta e no sonho unionista
De Pelloutier, Proudhon, Monatte e Malatesta,
No mito de Geroges Sorel,
No sonho acalentador
De Vladimir, Rosa e Leon
Que agora é espinho e fere.
Hoje, vegetal, enredo-me
Por toda a vida que acorda e adormece,
Que come, bebe, veste, ama e fuma,
Mas jamais se farta,
Pois deseja o que não é desejo,
O não-desejo que brota fora da carne,
Neste vasto cipoal
Que dificulta o trânsito
E contém as mãos, o afago, o beijo,
Insinuando-se por todos os corações
Com tudo que jamais farta; infarta!
Sabes quem sou?
Eu, espasmo dos séculos,
Estorvo dos desuses,
Sempre adverso ao mundo natural,
Uma outra natureza
Intrusa da ordem e do Século
Que impôs aos homens
Seu mandato e regra,
A despeito de tanta labuta, de tanto suor
E do clamor ignoto da populaça?
Meu nome é Cetáceo –
Rara jóia de Caim e de Nimrode,
Ouro nos dedos do feliz burguês,
Frio cálculo da razão e da mais-valia
À imagem e semelhança
Do rito que sacrificou o mito
Nos altares embebidos de sangue e miséria.
Eu, Sodoma e Gomorra, Mamon,
Babel, Tebas de cem portas, Big Apple!
II
Já os primeiros raios de sol
Batem nos olhos do monstro,
E ele arfa, bufa.
Da madrugada de tiros e sirenes,
De álcool e tranqüilizantes
Nasce mais uma alvorada,
Não de galos ou pássaros,
Mas de um sol bestializado,
Para uma manhã metálica,
De cobre e fiação elétrica,
De asfalto e condução
Que já vai lotada para o centro
Desde às seis horas da manhã,
Repleta de gente mal-dormida,
Babando no ombro alheio.
O cetáceo não dorme
Apenas se lembra que é mais um dia
Para quem tentou dormir
E urra da tv e do rádio:
“- Oi, bom dia, estamos aqui
Na 101,5 mais uma vez juntos,
É hora de acordar. Faz sol lá fora
E o dia promete ser quente.
Meu nome é tua cara, teu lábio e tua tara
E eu tenho um recado para você
Que me leva no trem, no carro, ou a pé
Desde a infância até o escritório:
- Todos em mim, todos em mim,
A trabalhar, a trabalhar,
A produzir, a produzir!
A matar e a odiar,
A reclamar e a adoecer,
A se encarar e se espremer,
A esperar e a bocejar
Nas filas, peças de dominó,
A xingar e a calar,
A temer e a acreditar,
A praguejar e a aceitar,
A beijar e a escarrar,
A odiar depois de amar,
A comer e vomitar,
A chorar e trabalhar,
A sorrir sem ter o que,
A dormir ante a TV,
A caminhar e viajar
Com o cotovelo
Na cara de outrem,
Bicando o calo alheio,
Pedindo licença
A pernas, bundas e pés,
Enquanto tenta amar
E chegar ao trabalho.
Vamos seguindo aqui
Nas entranhas do monstro
E não se esqueça:
- Cuidado nos cruzamentos
O trânsito está complicado
E a impaciência é grande,
Atenção ao sinal:
- Vai ficar amarelo, agora, vermelho,
Podeis prosseguir. Marchai!
Marchai para os consultórios!
Marchai para as repartições!
Marchai para os escritórios!
Marchai para as viaturas!
Marchai para os guichês!
Marchai para os bancos!
Marchai para as estações!
Marchai pelas avenidas!
Marchai para os aeroportos!
Marchai sem qualquer porto!
Marchai por aí louco e torto,
Reto e morto,
Rei deposto,
Marchai para o posto
E enchei o tanque e o coração
De álcool e mau gosto,
Marchai para vossos lares!
Marchai para mim, em mim, de mim,
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Marchai, marchai, marchai, marchai
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Devorai!!!
Os próprios filhos
E a carne irmã,
A própria vida
Assim mesmo:
Putrefata e malsã,
Vagando a esmo
A trabalhar, a trabalhar,
A produzir, a produzir,
A execrar, a execrar
Quem não quer profissão
Para alimentar de sangue e cifras
O imenso coração do cetáceo!
Cansai, cansai
Dormi, dormi...”
Mas insone o poeta diz:
"- Não tenho lugar aqui!"
Ao que logo o monstro replica:
"- Tolo, eu sou todo o lugar
E lugar nenhum,
Consciência e desdita
Que aferroam todo o dia.
Dormi, dormi, meu filho dileto,
E continuai a berrar esse canto contra mim
De todos os becos e guetos."
III
Em cada casa e beco,
Um carcereiro dita as horas de sono.
Não respeita as queixas dos insones,
Qualquer anseio ou fome,
Nem os desejos dos amantes,
Brada feroz e o corpo
Levanta-se autômato, zumbi,
Estica os braços pálidos, de cera,
Passa as mãos por cara cadavérica,
Na frente do espelho
Que busca refletir imagem esmaecida,
A boca bafienta,
Enquanto a escova passa pelos dentes
E o corpo evacua medo
E os detritos do dia anterior.
Olhos baços, no entanto,
Insistem em tremeluzir,
Enquanto bebe café, lê o jornal,
Pega a pasta e a marmita
E mergulha nas tripas do Cetáceo.
Logo nas alamedas e avenidas
Que se estendem para além
Do horizonte coberto por prédios
E espetaculares arranha-céus
É conduzido com todos às obrigações diárias
Sem nenhum desejo para sentir,
Sem nenhuma palavra para negar,
Sem memória que recorde do corpo, o ser,
História e sentido que restaurem
O fio partido, algo que um dia
Chamaram de espírito e utopia.
E a despeito de tantas discussões,
De algaravias e de mortes,
Do jogo e das apostas,
Das drogas e das mulheres,
Do sexo e das certezas
Cuspidas e fumadas,
De tanto arroto e bocejo,
De tanto riso e bravata,
De tanta fumaça e loucura,
De tanto susto e silêncio
Dos lares contíguos,
Amontoados dos subúrbios,
Das mães que oferecem o peito mesquinho
Do consenso geral
Aos filhos do próximo século,
Sois corpo, nada mais do que corpo
Insuspeito!
O Cetáceo sorri e se regozija.
Exibe as magníficas
E complicadíssimas entranhas,
Os caminhos a seguir,
O tempo a cumprir,
Os papéis a assinar,
O status desejado,
A vida mais que determinada.
Ele tripudia, mostra sua escória,
Os filhos desejando o próprio ventre,
Devorando-se entre tiros e abutres.
Sorri sardônico, porque sempre
Haverá uma mulher ou um menino
A nos oferecer sexo e cigarros.
Eleva-se à mais alta
Das protuberâncias do seu estômago,
A mais ingente de todas as babéis
Para contemplar magnífica visão:
O bonde fiel aos trilhos,
O homem fiel à vida,
A vida fiel ao corpo,
O corpo fiel à maquina,
A máquina fiel ao monstro.
“- Que magnífica visão!”
O cetáceo rejubila-se,
De Wall Street manda-nos um beijo,
Da Ilha de Manhattan saúda a todos
A lutar pela ração diária das vitrines,
Dos anúncios e das meretrizes,
Pois ainda que uma mulher
Solte os cabelos e se jogue pela janela,
Que uma criança nasça
Coberta de sangue e avenida
Ou um velho corra nu pela auto-pista
Tudo sempre será o que foi:
Tráfego e Multidão.
“- Que magnífica visão!”
IV
À noite, as casas e os prédios
Recebem seus suarentos habitantes.
Os armários recebem cintos e gravatas.
“Boa noite, caro ouvinte,
Caro ouvinte-telespectador,
Boa noite de sono e traqüilizantes
E não se esqueça:
Amanhã, tem mais,
Amanhã, eu volto
Para de novo cuspi-lo
Em dias que insistem em nascer –
Dormi, dormi...”
V
Mas no outro dia,
Em qualquer dia,
05, 07, 11 ou 16,
23, 19, 21 ou novamente 11;
Em qualquer mês,
12, 10, 03 ou 04,
07, 09, 02 ou 08;
Em qualquer ano,
98, 2004, 95 ou 72,
Novamente em 98,
2001, 93 ou em 2002,
O corpo travado
Sem cronologia ou calendário
Não acorda nem levanta.
A cidade está em chamas;
Nero a incendiou.
O corpo está em chamas;
Roma incendiada,
E os aviões arremetem
Contra o edifício,
Despencam sobre nossas cabeças.
Homens-bomba escondem-se
Na garagem dos prédios,
No subterrâneo dos sonhos.
“É hora de acordar.
Acordai! Marchai!”
Já não podeis.
“Marchai, autômato!”
Já não quereis,
“Marchai, corpo!”
Já não sois.
“Há algo de errado”,
A programação se encerrou
Sem aviso.
“Há algo de errado,
De muito errado mesmo...”
Esta forma extrema,
Escura, crisálida,
Recusa...
Do barro ao macadame,
Do macadame ao asfalto,
Dos cortiços e casarios aos prédios,
Dos prédios aos arranha-céus,
Das vielas às alamedas
Das alamedas às intermináveis auto-pistas,
Gerei-me, formei-me e cresci incomensurável –
Criança desmamada nos peitos
Da fome e da exploração.
Cresci, bebi e fartei-me na burra de Balaão,
Nas tendas dos vendilhões do Templo,
Na bolsa dos mercadores sefarditas,
Dos italianos, burgaleses, flamengos e alemães,
Na usura dos Beneviste, dos Évora e dos DiNegro,
No ouro do Sudão, na prata de Potosi,
Nas feiras e praças de Antuérpia, Lyon, Frankfurt e Gênova,
Na cavalaria de Oliver Cromwel,
Nos jacobinos decapitados,
No assassinato de Marat,
Na execução de Danton,
No golpe do nove Termidor,
Na bengala brilhante dos Barões,
No Consulado de Bonaparte,
Na Batalha de Trafalgar,
Nos canhonaços de Villeneuve e Nelson,
Nos bolsos endinheirados
De Ford e Rockeffeller,
No esquadro e compasso
De Niemayer, Gropius e Le Corbusier.
Cresci, bebi e fartei-me
Nos Senhores que escravizaram seus servos,
Nos espoliadores dos povos,
Nas marteladas dos operários,
Nas mães que venderam seus filhos
Nos mercados e fábricas,
Nos homens que assistiram passivos
As mães e esposas se prostituírem.
Cresci, bebi e fartei-me
No Congresso Anarquista Internacional,
No luta e no sonho unionista
De Pelloutier, Proudhon, Monatte e Malatesta,
No mito de Geroges Sorel,
No sonho acalentador
De Vladimir, Rosa e Leon
Que agora é espinho e fere.
Hoje, vegetal, enredo-me
Por toda a vida que acorda e adormece,
Que come, bebe, veste, ama e fuma,
Mas jamais se farta,
Pois deseja o que não é desejo,
O não-desejo que brota fora da carne,
Neste vasto cipoal
Que dificulta o trânsito
E contém as mãos, o afago, o beijo,
Insinuando-se por todos os corações
Com tudo que jamais farta; infarta!
Sabes quem sou?
Eu, espasmo dos séculos,
Estorvo dos desuses,
Sempre adverso ao mundo natural,
Uma outra natureza
Intrusa da ordem e do Século
Que impôs aos homens
Seu mandato e regra,
A despeito de tanta labuta, de tanto suor
E do clamor ignoto da populaça?
Meu nome é Cetáceo –
Rara jóia de Caim e de Nimrode,
Ouro nos dedos do feliz burguês,
Frio cálculo da razão e da mais-valia
À imagem e semelhança
Do rito que sacrificou o mito
Nos altares embebidos de sangue e miséria.
Eu, Sodoma e Gomorra, Mamon,
Babel, Tebas de cem portas, Big Apple!
II
Já os primeiros raios de sol
Batem nos olhos do monstro,
E ele arfa, bufa.
Da madrugada de tiros e sirenes,
De álcool e tranqüilizantes
Nasce mais uma alvorada,
Não de galos ou pássaros,
Mas de um sol bestializado,
Para uma manhã metálica,
De cobre e fiação elétrica,
De asfalto e condução
Que já vai lotada para o centro
Desde às seis horas da manhã,
Repleta de gente mal-dormida,
Babando no ombro alheio.
O cetáceo não dorme
Apenas se lembra que é mais um dia
Para quem tentou dormir
E urra da tv e do rádio:
“- Oi, bom dia, estamos aqui
Na 101,5 mais uma vez juntos,
É hora de acordar. Faz sol lá fora
E o dia promete ser quente.
Meu nome é tua cara, teu lábio e tua tara
E eu tenho um recado para você
Que me leva no trem, no carro, ou a pé
Desde a infância até o escritório:
- Todos em mim, todos em mim,
A trabalhar, a trabalhar,
A produzir, a produzir!
A matar e a odiar,
A reclamar e a adoecer,
A se encarar e se espremer,
A esperar e a bocejar
Nas filas, peças de dominó,
A xingar e a calar,
A temer e a acreditar,
A praguejar e a aceitar,
A beijar e a escarrar,
A odiar depois de amar,
A comer e vomitar,
A chorar e trabalhar,
A sorrir sem ter o que,
A dormir ante a TV,
A caminhar e viajar
Com o cotovelo
Na cara de outrem,
Bicando o calo alheio,
Pedindo licença
A pernas, bundas e pés,
Enquanto tenta amar
E chegar ao trabalho.
Vamos seguindo aqui
Nas entranhas do monstro
E não se esqueça:
- Cuidado nos cruzamentos
O trânsito está complicado
E a impaciência é grande,
Atenção ao sinal:
- Vai ficar amarelo, agora, vermelho,
Podeis prosseguir. Marchai!
Marchai para os consultórios!
Marchai para as repartições!
Marchai para os escritórios!
Marchai para as viaturas!
Marchai para os guichês!
Marchai para os bancos!
Marchai para as estações!
Marchai pelas avenidas!
Marchai para os aeroportos!
Marchai sem qualquer porto!
Marchai por aí louco e torto,
Reto e morto,
Rei deposto,
Marchai para o posto
E enchei o tanque e o coração
De álcool e mau gosto,
Marchai para vossos lares!
Marchai para mim, em mim, de mim,
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Marchai, marchai, marchai, marchai
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Marchai, marchai, marchai, marchai,
Devorai!!!
Os próprios filhos
E a carne irmã,
A própria vida
Assim mesmo:
Putrefata e malsã,
Vagando a esmo
A trabalhar, a trabalhar,
A produzir, a produzir,
A execrar, a execrar
Quem não quer profissão
Para alimentar de sangue e cifras
O imenso coração do cetáceo!
Cansai, cansai
Dormi, dormi...”
Mas insone o poeta diz:
"- Não tenho lugar aqui!"
Ao que logo o monstro replica:
"- Tolo, eu sou todo o lugar
E lugar nenhum,
Consciência e desdita
Que aferroam todo o dia.
Dormi, dormi, meu filho dileto,
E continuai a berrar esse canto contra mim
De todos os becos e guetos."
III
Em cada casa e beco,
Um carcereiro dita as horas de sono.
Não respeita as queixas dos insones,
Qualquer anseio ou fome,
Nem os desejos dos amantes,
Brada feroz e o corpo
Levanta-se autômato, zumbi,
Estica os braços pálidos, de cera,
Passa as mãos por cara cadavérica,
Na frente do espelho
Que busca refletir imagem esmaecida,
A boca bafienta,
Enquanto a escova passa pelos dentes
E o corpo evacua medo
E os detritos do dia anterior.
Olhos baços, no entanto,
Insistem em tremeluzir,
Enquanto bebe café, lê o jornal,
Pega a pasta e a marmita
E mergulha nas tripas do Cetáceo.
Logo nas alamedas e avenidas
Que se estendem para além
Do horizonte coberto por prédios
E espetaculares arranha-céus
É conduzido com todos às obrigações diárias
Sem nenhum desejo para sentir,
Sem nenhuma palavra para negar,
Sem memória que recorde do corpo, o ser,
História e sentido que restaurem
O fio partido, algo que um dia
Chamaram de espírito e utopia.
E a despeito de tantas discussões,
De algaravias e de mortes,
Do jogo e das apostas,
Das drogas e das mulheres,
Do sexo e das certezas
Cuspidas e fumadas,
De tanto arroto e bocejo,
De tanto riso e bravata,
De tanta fumaça e loucura,
De tanto susto e silêncio
Dos lares contíguos,
Amontoados dos subúrbios,
Das mães que oferecem o peito mesquinho
Do consenso geral
Aos filhos do próximo século,
Sois corpo, nada mais do que corpo
Insuspeito!
O Cetáceo sorri e se regozija.
Exibe as magníficas
E complicadíssimas entranhas,
Os caminhos a seguir,
O tempo a cumprir,
Os papéis a assinar,
O status desejado,
A vida mais que determinada.
Ele tripudia, mostra sua escória,
Os filhos desejando o próprio ventre,
Devorando-se entre tiros e abutres.
Sorri sardônico, porque sempre
Haverá uma mulher ou um menino
A nos oferecer sexo e cigarros.
Eleva-se à mais alta
Das protuberâncias do seu estômago,
A mais ingente de todas as babéis
Para contemplar magnífica visão:
O bonde fiel aos trilhos,
O homem fiel à vida,
A vida fiel ao corpo,
O corpo fiel à maquina,
A máquina fiel ao monstro.
“- Que magnífica visão!”
O cetáceo rejubila-se,
De Wall Street manda-nos um beijo,
Da Ilha de Manhattan saúda a todos
A lutar pela ração diária das vitrines,
Dos anúncios e das meretrizes,
Pois ainda que uma mulher
Solte os cabelos e se jogue pela janela,
Que uma criança nasça
Coberta de sangue e avenida
Ou um velho corra nu pela auto-pista
Tudo sempre será o que foi:
Tráfego e Multidão.
“- Que magnífica visão!”
IV
À noite, as casas e os prédios
Recebem seus suarentos habitantes.
Os armários recebem cintos e gravatas.
“Boa noite, caro ouvinte,
Caro ouvinte-telespectador,
Boa noite de sono e traqüilizantes
E não se esqueça:
Amanhã, tem mais,
Amanhã, eu volto
Para de novo cuspi-lo
Em dias que insistem em nascer –
Dormi, dormi...”
V
Mas no outro dia,
Em qualquer dia,
05, 07, 11 ou 16,
23, 19, 21 ou novamente 11;
Em qualquer mês,
12, 10, 03 ou 04,
07, 09, 02 ou 08;
Em qualquer ano,
98, 2004, 95 ou 72,
Novamente em 98,
2001, 93 ou em 2002,
O corpo travado
Sem cronologia ou calendário
Não acorda nem levanta.
A cidade está em chamas;
Nero a incendiou.
O corpo está em chamas;
Roma incendiada,
E os aviões arremetem
Contra o edifício,
Despencam sobre nossas cabeças.
Homens-bomba escondem-se
Na garagem dos prédios,
No subterrâneo dos sonhos.
“É hora de acordar.
Acordai! Marchai!”
Já não podeis.
“Marchai, autômato!”
Já não quereis,
“Marchai, corpo!”
Já não sois.
“Há algo de errado”,
A programação se encerrou
Sem aviso.
“Há algo de errado,
De muito errado mesmo...”
Esta forma extrema,
Escura, crisálida,
Recusa...
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