Minha alma
É tão pobrinha
E a tanto tempo definha
Que já lhe preparei funeral.
Espero logo que morra
Como a andorinha
Ou os bem-te-vis
Numa revoada
Matinal.
Espero que logo morra
A minha alma
E leve consigo
Todas as minhas mágoas
E me deixe em paz, vivo
A transparecer, enfim,
Uma súbita calma.
Ah, minha alma,
Vá embora
E leve contigo
Esta face que só chora,
Esta boca que só ora
E não entende que a vida
É o instante, o agora.
É uma boca
Que nos devora
Na íris do sol,
Na pétala da rosa
Ou na luz das nebulosas.
Ah, minha alma,
Deixa-me,
Pois não sou como tu,
Etérea e alva,
Pois sou este corpo
Sujo,
Lava que arde
No escuro.
Ah, minha alma,
Vou-me excomungar-te.
Tua vais para o céu
E eu para vala.
Tu és a cabala
E eu pouca coisa,
Quase nada.
Melhor assim;
Não há nada o que me valha
E vivo ao léu
De quem não ajunta,
Só espalha.
Separar-te-ei
Do meu pensamento,
Para semear-te
No vento.
Ah, minha alma,
Quando me veio o Diabo
E por ti
Ofereceu-me
Reinos, ouro, prata,
Eu apenas lhe disse:
“- Tome-a de graça.”
Ah, minha alma,
Te desejo
Que sejas feliz,
Que voltes
À lama,
Ao barro
Da onde vim,
Que de mim
Te evoles
Qual fumaça
De um cigarro,
Que vires
Uma dócil avezinha,
Branca pombinha
A voar livre, livre
Para longe de mim,
Para que, enfim,
Eu não me aprisione a ti
Nem tu, a mim,
E eu me torne
Alguém
Que vive, vive, vive
A romper
Todos os gradis.
Ah, minha alma,
Deixa-me desalmado,
Sem nada, ninguém,
Sem anjo ou juiz
Ao meu lado,
Porque como tu
Eu também
Quero ser livre e feliz.