Horas terríveis de murro e delação...
A quem enfim te entregarias,
Após tanto resistir, senão a teus verdugos?
Conheces bem a sola dos coturnos
E que a carne sempre trai qualquer vontade.
No eletrochoque, o corpo contorce-se,
A língua revira-se e a boca que só grita
Súbito, num espasmo, conta toda a verdade.
O que te fizeram naqueles porões?
Tu eras um homem bonito,De pele trigueira, cabelos negros e revoltos.
Um dia foste diferente do que tens sido,
Tempo de antigas fotografias
Em que não exibias o olhar terroso,
Destituído de toda a esperança e alegria,
Em que a noite ainda não te roubara o gozo,
Muito menos tua crença e utopia.
O que te fizeram naqueles porões?
Já eras assim quando lá te lançaram?Quando nasci em 1976,
Teus olhos já eram dois lagos de pez,
Tua boca calava terror imenso
Que vinha de celas, fronteiras e muros.
Havias sumido de todas as células, bandeiras e ruas,
Já eras um pétreo monólito de silêncio
E me tornaste carne da carne tua.
O que te fizeram naqueles porões?
Dizias ter perdido o bonde e a HistóriaAo assistir os mesmos ratos dos porões
Agora em plena luz do dia
Ditando aos teus filhos uma oratória
Repleta de atraso e carestia,
Ao ver que te tornaram o país
O próprio chão que te devora,
O filho que te odeia e maldiz.
O que te fizeram naqueles porões?
Depois foram só rezas e sermõesPor terem te arrancado tudo
Menos a vergonha e a culpa
Que te tornaram a consciência uma mão suja
Que hoje queres extirpar a todo custo.
Rendo-me enfim à prece escusa
Ao ser e país que teus torturadores
Mataram em meio a gritos e horrores.
O que nos fizeram naqueles porões?