segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Soneto do povo idiota

 

Pensava que este povo, com valor,
Votasse agradecido e sem temor.
Pensava que ele ao menos fosse bravo
E não de ideias tolas fosse escravo.
Pensava que, por ser justo eleitor,
Votasse inteligente, sem rancor;
E pela gratidão, não por centavos,
Elegesse quem, sério e sem conchavos,
A todos governou com retidão.
Mas feito de idiota, seduzido
Por mentiras, votou prostituído,
Pois, ingrata, esta vil população,
Que jamais será nobre à foz de um tejo,
É do Botas, do escuro e velho brejo.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Soneto da lésbica lua


Surge a lua no céu desta cidade
Nua, nele, flutua muito antiga,
Lúbrica sobre nossa castidade
E sempre a fantasia nos instiga.
Balão que paira sobre a realidade,
Não há por causa dela quem me diga
Que, sozinho, na sua intimidade,
Não amou um rapaz ou rapariga.
Alva, enquanto a contemplo desta praça
E traz o dia sujo a poluição,
Deslustrada parece que se embaça,
Embuça-se, lasciva e clandestina,
Para, oculta, em ardente relação,
Ter sensual a Estrela matutina.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Soneto do homem malogrado

 

Sinto que o essencial em mim faltou,

Que tudo se esvanece sem demora,

Que rompo inutilmente toda a aurora

Desta vida em que nada me bastou.

 

Sinto que no fim tudo se frustrou,

Que alheio me tornei quem ignora,

Aceito ou reprovado, dentro ou fora,

O fardo que meu ser sempre curvou.

 

Me fica a sensação de ter vivido

O que me foi imposto ou obrigado

E jamais meu prazer ter consentido,

 

Pois logo que nasci vivi errado

O que nunca me fez qualquer sentido

E faz com que me sinta malogrado.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Nuvens

 

As nuvens vomitam tragédias,
Expelem desespero e trevas.
Não é sombra, chuva ou cantiga,
Não são anjos, suave brisa,
A neve branca e natalina.
As nuvens vomitam tragédias
De um céu sem nenhuma promessa.
E as mais fugazes e branquinhas,
De que gostam as criancinhas,
Somem, fogem, em bandos, junto
Com fadas, anjos e castelos
Do firmamento cor de chumbo
A desabar sobre este mundo
Com aguaceiros e flagelos.

sábado, 29 de junho de 2024

Soneto do homem em chamas

 

Todo um Zeppelin arde no meu peito.

Todo em chamas me queima no meu leito.

É fogo consumindo-me indecente,

Insânia que só minha carne sente.


Ânsia – desejo nunca satisfeito,

Coisa que me lançar de um parapeito

Me faz querer às camas loucamente

Em busca de prazer que me alimente


A boca que não cessa de querer

Beijos, bocas, ser que ama por inteiro

E bêbado só pensa em se perder,


Ardendo como Roma num incêndio

Ou no calor do Rio de Janeiro

Quem do excessivo amor quer o dispêndio.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Soneto da lamentação


Pena durarem pouco as amizades
E de igual modo as paixões e os amores;
Que desbotem como murchadas flores,
Pois tudo é breve e frágil nas cidades.
Pena ganharmos logo tanta idade,
Perder meu dia tão rápido as cores
Em meio a cãs, rugas e muitas dores,
Pois tudo é choro, tristeza e saudade.
Se um dia fui feliz, já não me lembro.
Encerro mais um lúgubre dezembro
Sozinho sem amada e sem amigo.
Se um dia fui alegre e desejado,
Agora vivo triste e desprezado
Como Ulisses vestido de mendigo.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Esta cidade


Esta cidade
Atravessou-me o lado
E dele saíram
Portos e esquinas,
Punhos cerrados
E quarenta dias
De sede, fome e delírios.
Dele saíram
Homílias e evangelhos,
Imensos megatérios,
Soluços e violoncelos.
Dele saíram
Raios e insetos,
Alucinações
E cogumelos.
Esta cidade
Atravessou-me o lado
E dele saíram
Elevados cumes
E anjos
Que me precipitaram
Ao chão de asfalto,
Betume e concreto.
Dele saiu-me
O que sou:
A lança e o deserto.